A banalidade dos dias tem muita beleza. É preciso olhar com atenção e extrair o belo do quotidiano.
Margarida Ferra (1977; Lisboa) consegue extrair essa beleza com uma prosa de ritmo poético e tocada pela ternura.
“Saber Perder” (Companhia das Letras) reúne pequenos textos que vão compondo um mosaico da vida da autora. Sem cair na vitimização ou justificação, Margarida Ferra desvela partes da sua identidade, tapando e revelando de forma terna e suave. Escreve sobre a família, os filhos, o bairro lisboeta e o rapaz paquistanês do café ao lado. Este exercício de memória salva pessoas (mais do que personagens) do esquecimento e tenta resgatar familiares, desde a Póvoa de Varzim ao Brasil.
“Procuro esses pedaços de realidade de que quero servir-me em pontos geográficos precisos: na minha casa, na rua e em casas aonde não posso entrar. Como a da minha mãe durante a pandemia, as reservas do museu da Póvoa de Varzim, a casa dos meus avós, no Porto, que não vi ficar vazia e onde o meu avô chamar pela última vez Bebé à minha avó.”
A autora lisboeta não faz do formato de “não ficção” um relato unipessoal. É um livro com pessoas e objetos em contexto citadino, numa reflexão intimista.
Muitas das reflexões partem de objetos, como anéis e jogos de tabuleiros. São peças que remetem para um tempo perdido, um gatilho para acontecimentos anteriores que merecem continuar registados na memória. São peças de um museu individual que fazem viajar no tempo e reencontrar pessoas que já não existem.
A autora deixou o formato mais limitador do poema, mas não abdicou da cadência. O formato permite-lhe mais liberdade; à extensão do texto, junta uma voz burilada pela poesia.
Depois de dois livros de poemas (Curso intensivo de jardinagem e Sorte de principiante, publicados pela &etc), surge a prosa em “Saber Perder”, indagação sobre o passado e sobre a própria escrita, que serve para ordenar a vida.
Imaginemos o livro de Margarida Ferra como as moedas que o avô deixou nas paredes da casa, vestígios a serem descobertos pelo futuro para haver a possibilidade de compor e resgatar o tempo.
São moedas soltas, mas coligadas, com valor relevante.
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