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"A Voz das Mulheres" (Alfaguara), de Miriam Toews

 



No período de quatro anos, entre 2005 e 2009, a colónia menonita de Manitoba, na Bolívia, teve uma série de incidentes entre as mulheres.  

Chamo incidentes, quando na verdade, deveria dizer violações. 

Muitas mulheres acordaram cheias de hematomas, a sangrar entre as pernas, doridas. 

Os ataques noturnos foram atribuídos a fantasmas e demónios. Elas eram as culpadas e estavam a ser castigadas por Deus, ou, caso as evidências físicas não fossem consideradas suficientes, eram adjectivadas de mentirosas. 

As vítimas foram descredibilizadas e culpadas do respectivo infortúnio. 

Descobriu-se depois que eram adormecidas por um anestésico veterinário e violadas por oito homens da colónia. 

Em 2013, apesar de esses homens já estarem encarcerados, foram reportadas novas agressões sexuais. 

“A Voz das Mulheres” (Alfaguara; trad. Ana Maria Pereirinha), de Miriam Toews (n.1964, Canadá), é um acto de imaginação feminina baseada nesses acontecimentos. Neste caso, há mesmo imaginação. 

A escritora canadiana correu o risco de lhe escapar a mão e descambar num texto panfletário de femismo. Desde o princípio, está-se à espera da escorregadela, do foco no patriarcado, da diabolização do homem. Perderia o valor literário; ganhariam os cartazes e as bandeiras. Não é o caso. 

Miriam Toews consegue equilibrar várias ideias durante o processo. São vários pratos que mantém no ar enquanto tenta dar várias perspectivas sobre o problema. 

A estrutura é classicista; toda a dinâmica ou evolução se baseia na dialéctica entre as várias mulheres que se reúnem num celeiro para debater a solução para o problema. Devem ficar e lutar? Não fazer nada? Ou devem partir? 

Esta reunião em Molotschna (onde viviam), organizada por Agata Friesen e Greta Loewen, foi feita à pressa, enquanto os homens se deslocaram à cidade para pagarem a fiança dos primeiros culpados pelas violações. 

Elas querem pensar, querem que a sua voz se faça ouvir, querem a verdade (última palavra do livro). Rejeitam o destino de Mina, mãe de Neitje. 



“Mina enforcou-se depois de Neitje ter sido atacada no seu quarto, os pulsos em carne viva, do cordel de enfardar, o corpo emporcalhado de sangue, de merda e de sémen. No início, Peters disse a Mina que Satanás era o responsável pelo ataque, que era castigo de Deus, que Deus estava a punir as mulheres pelos seus pecados. Depois, Peters disse a Mina que ela tinha inventado o ataque. Repetiu as palavras «imaginação feminina desvairada» (…)” 




Esse grupo de mulheres pode ser visto de forma denotativa, metafórica, ou mesmo das duas formas. 

A diferença de opiniões entre elas revela características pessoais, questões sociológicas, teológicas e ideológicas. 

Cada uma tem a sua experiência pessoal; essa experiência formou uma maneira de pensar e de se expressar que entra em contradição com outros membros da comunidade. A agressividade de Mariche é o contraponto da amabilidade, diria mesmo bondade praticada religiosamente, de Ona. 

Greta, que usa uma dentadura demasiado grande depois de levar uma tareia que lhe arrancou os dentes, fala por parábolas. As suas éguas, Ruth e Cheryl, dão-lhe lições que as outras mulheres, exasperadas com aquela obsessão, não entendem. 

É Ona, com a inclinação para o perdão, que levanta a mais premente questão sociológica: Se os homens, especialmente os mais jovens, são produto da época e do ambiente, não são eles também vítimas? 


Diz Ona: “Sabemos que as condições de Molotschna foram criadas pelo homem, que estes ataques foram tornados possíveis, a própria conceção destes atos, o planeamento destes ataques, a justificação para estes ataques na mente dos homens, devido às circunstâncias de Molotschna. E essas condições foram criadas e ordenadas pelos homens, pelos anciãos e pelo Peters. (…) 

Mas espera, diz Mariche, tu não estás a sugerir que os agressores são tão vítimas como as vítimas dos ataques? Que todos nós, homens e mulheres, somos vítimas das circunstâncias nas quais Moltschna foi criada? 

(…) Então, diz Mariche, quero o tribunal os considere culpados ou inocentes, eles são, afinal inocentes?  

Sim, diz Ona, diria que sim.”

 


O determinismo sociológico de Ona contrasta com a opinião de Salome que ataca directamente o patriarcado (palavras do redactor, único homem presente na reunião, e não de Salome) As mulheres não têm palavra, a verdade não está nelas. São equiparáveis a animais. 

Qualquer que seja a opinião, há uma formação de base, além da sociológica. Não há momento em que a fé não esteja presente na cabeça e no coração destas mulheres. 

As dúvidas sobre a vontade divina são omnipresentes, o caminho a percorrer é assombrado pela possibilidade de serem castigadas por Deus depois da vida terrestre. E há uma pergunta que sobressai entre todas as dúvidas: 

O perdão obrigado é um perdão legítimo? Perdoarem os homens para continuarem a viver no mesmo local é genuíno? 

Ona, a bondade deste “organismo”, conta a August Epp, “homem efeminado” encarregue de fazer as actas da reunião, que “em sua opinião, a dúvida, a incerteza e o questionamento estão inextricavelmente ligados à fé. Uma existência intensa, disse ela, uma maneira de estar no mundo (…)” 


Se lermos as palavras das mulheres- curiosamente sempre filtradas por um homem- como as correntes do feminismo e anti-feminismo, temos uma representação importante da sociedade actual. Desde a eliminação dos homens, através da luta física, até à vitimização dos violadores, há diferentes espectros representados nos diálogos. No fim, a conclusão não poderia ser outra senão uma conclusão política. 

Se a dicotomia homem-mulher parece demasiado vincada, eis Melvin (outrora Netti Gerbrandt) que vem tornar essa fronteira mais fluida. Melvin, que se assume e se veste como rapaz, foi violada pelo irmão. Depois disso, passou a não falar com os adultos, voz da razão, e só interage com as crianças, voz da inocência. 

(Na adaptação cinematográfica do filme, há uma pungente cena em que Melvin fala, pela primeira vez, com uma adulta. E fá-lo para agradecer que essa mulher o tenha reconhecido como ele se sente, agradece que o tenha chamado de Melvin)

 




 

Miriam Toews utiliza estratégias narrativas que trazem complexidade, mas também desvantagens.
Uma dessas estratégias é o posicionamento do narrador.
August Epp foi escolhido pelas mulheres para registar em acta tudo o que elas diziam. Apesar de lermos o texto que ele escreveu, poderemos dizer que ele é o autor? E que tipo de fidedignidade aplicou na redacção?
Epp, professor daquela comunidade, não se inibe de registar o que vai pensando sobre as conversas, enviesando a imparcialidade de quem regista. Este narrador denuncia que é “detentor de uma voz observável ao nível do enunciado por meios de intrusões, vestígios mais ou menos discretos da sua subjectividade, que articulam uma ideologia ou uma simples apreciação particular sobre os eventos relatados e as personagens referidas.” (Dicionário de Narratologia, de Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes).
Este registo causa estranheza desde o início. Por que razão registam quando não sabem ler? Será para as próximas gerações? A verdadeira razão é outra, como será declarada quase no fim. Tudo tem a ver com integração.

Miriam Towes dá voz a quem não tem voz, acção em vez de reacção, palavra a quem tentam calar.
“A Voz das Mulheres” tinha tudo para dar errado. Poderia ser um exercício de propaganda enfiado pela garganta do leitor. Um livro como forma de diversão para um exercício de ideologia radical. Felizmente, é muito mais do que isso. É literatura.

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1 Comentários

Carlos Faria disse…
Só li um livro de Miriam Towes,A complicated kindness. Onde os problemas de liberdade e socialização dos menonitas estão presentes. Como canadiano de nascimento tento acompanhar os escritores canadianos, é uma autora sensível e que aborda sem amarras os problemas dessa comunidade sem obedecer a rotulos. Fiquei curioso com este romance.