“Leme”, de Madalena Sá Fernandes: a violência tem nome próprio.
Talvez seja o olhar para dentro aquele que mais perigo traz. O olhar para o passado e para quem o assombrou; o olhar para dentro de portas quando o refúgio não é mais do que um inferno com assoalhadas.
A violência doméstica, como têm mandado (mal) as velhas regras, diz respeito a quem passa por ela. Quem está de fora prefere não saber.
Assumir-se que se está numa relação tóxica, diagnosticar-se como refém de uma relação em que se é vítima de violência, requer coragem.
Assumir-se que se está numa relação tóxica, diagnosticar-se como refém de uma relação em que se é vítima de violência, requer coragem.
Em “Leme” (Companhia das Letras) há essa coragem.
No seu primeiro romance, Madalena Sá Fernandes (1993, Lisboa) dá voz ao que a tradição tem calado. A violência doméstica existe, não pertence a uma só classe social, e é alimentada pelo medo e pela vergonha. É preciso ser enfrentada, combatida com amor próprio, e denunciada como a autora o faz.
Durante 165 páginas, Madalena Sá Fernandes enfrenta um período, que nos é descrito como “entre a autobiografia e a ficção”, que vai da infância até já ser mãe. Dir-se-ia uma rota traçada por traumas e respectivas curas.
“Em certas alturas, era difícil adormecer, porque eu tinha medo de que o Paulo matasse a minha mãe.”
Quem vive numa relação tóxica, ainda que em segundo plano como a narradora, tem dificuldades em diagnosticá-la como nociva. Quando se é criança, toma-se o mundo pela parte e tudo parece normal, tudo parece uma réplica de outras famílias. E mesmo no momento em que se percebe que algo está errado, mesmo nesse momento, pode haver a procura inconsciente de uma relação similar na vida adulta. Não se estranha quando o poder é exercido até se ser cerceado e, palavra ante palavra, abdicar-se da liberdade em defesa de um bem pretensamente comum.
A limitação de liberdade não se dá por decreto nem de um momento para o outro. Antes da violência física, vem a emocional. A manipulação de outra pessoa é feita sub-repticiamente, num jogo de sedução visto, tantas vezes, como preocupação com o outro. E a culpa, que devia pender para quem agride, vira-se contra a vítima. Os dois fluentes acabam por convergir.
“Não podia dizer publicamente como tinha acontecido, mas acabei por contar a algumas pessoas. A situação emocional inverteu-se e, estranhamente, quase fiquei com pena dele. Não contar a verdade parecia também uma maneira de o proteger. O Paulo ficou transtornado. Claramente, não tinha intenção de me partir o braço.
Nos dias seguintes, evitou-se, afastou-se e ficou mais recolhido, a ponto de ter sido eu a aproximar-me, como se fosse meu dever consolá-lo.”
As relações violentas são complexas porque não são só formadas por agressividade. Os momentos bons desculpam ou atenuam os excessos. Quando a vítima dá por isso, percebe que abdicou demais. Essa complexidade é denunciada página ante página até ao inevitável epílogo. Alguém tem de soçobrar.
Madalena Sá Fernandes vai revelando a dinâmica de uma relação doentia através de uma estrutura “solta”, em que os episódios podem ser vistos como exemplos de violência explícita ou implícita, sem uma relação dependente da diacronia. É o medo que liga os 87 pequenos capítulos ou entradas.
É uma estrutura confortável para quem faz de “Leme” o seu primeiro romance publicado. E é sob essa luz que deve ser visto. É preciso não perder de vista o facto de ser um primeiro romance. Como tal, não compromete nem deslumbra; assume-se como uma promessa válida para os próximos trabalhos.
É um livro corajoso sobre violência doméstica e cujos episódios mostram a complexidade dessas relações. Falta-lhe um golpe de asa; falta ao leitor sentir a violência e não que lha seja explicada. Mas sublinhe-se o que tem:
Frases afiadas, sem afectação, certeiras de uma escritora que fez o suficiente para merecer atenção. É a primeira vez que enfrenta as “feras”, a primeira vez que se dá como autora de um romance. Pode, sem medo, olhá-las nos olhos.
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