"Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania: a do reino da saúde e a do reino da doença"
Não deveria haver vergonha quando se visita o reino da doença, ou mesmo quando se assenta morada. Não deveria, mas há uma vergonha alimentada por linguagem fóbica. Talvez tentemos aplicar o princípio do Gato de Schrödinger. Enquanto não for nomeada, continua a haver possibilidade de nos mantermos no reino da saúde, somente tendo feito uma curta visita ao da doença.
Susan Sontag, que teve longas estadias no reino da doença, incide o olhar nas metáforas que nos afastam do conhecimento real.
Em "A Doença como Metáfora" (Quetzal), a autora nova-iorquina defende a tese de que "a doença não é uma metáfora, e o modo mais honesto de olhar a doença- e o modo mais são de estar doente- é o olhar mais depurado, mais resistente ao pensamento metafórico." Ou seja, temos um livro a puxar o indizível para a luz. A guerra à ignorância dá-se em duas batalhas:
Primeiro, Sontag concentra-se no cancro e na tuberculose como o não-nomeável (com apontamentos sobre a lepra e a saúde mental); segundo (e mais tarde no tempo) escreveu sobre "a Sida e as Suas Metáforas".
A coerência temática está assim garantida. No entanto, há redundâncias evitáveis e inimigas da concisão. Seja como for, estes ensaios depressa se elevam como charneira para quem sofre, na pele ou indirectamente, a devastação provocada pela doença. Para isso, a autora recorre à experiência pessoal, a dados biográficos de autores (Kafka, por exemplo) e bibliografia mais técnica.
Acutilante, como sempre, Sontag desconstrói a mitificação presente na vida real e na literatura:
"A mãe do herói "Armance" (1827), de Stendhal, recusa-se a dizer «tísica», com medo de que ao pronunciar a palavra possa apressar o avanço da doença do filho. E Karl Menninger observou (em O Equilíbrio Vital) que «a simples palavra "cancro" terá matado, ao que se diz, alguns pacientes que, ignorando-o, não teriam sucumbido (tão depressa) ao mal de que padeciam».
A tuberculose era caracterizada, imagine-se, como condição dos românticos. Os poetas queriam-se magérrimos, pálidos, e em processo de consumpção.
"Passou a ser malvisto comer com apetite. Um ar sofredor passou a ser sedutor. «Chopin era tísico numa época em que não era chic gozar de boa saúde», escreveu Camille Saint-Saëns em 1813. « O que estava na moda era o ar pálido e lânguido;"
A utilização de vocabulário metafórico (ao qual esta crítica também não escapa) suaviza, ou tem essa ideia, o sofrimento do doente ao ponto de esconder o diagnóstico. Lembremo-nos do óbito por cancro: "faleceu depois de doença prolongada".
Hoje, décadas depois de os dois ensaios terem sido escritos, algo mudou em relação ao cancro, sida e tuberculose. No entanto, a vergonha ainda resiste. O doente é visto como agente passivo da sua própria fraqueza, que é vergonhosa.
Em "O Imoralista", de Gide, o herói adoece com tuberculose por ter reprimido a sua natureza sexual; Norman Mailer afirmou ter esfaqueado a mulher porque, se não o fizesse, os sentimentos reprimidos o teriam adoecido com cancro.
Se hoje se passa menos com o cancro, pensemos na doença mental. O doente é visto como fraco, primeiro, e como vítima das circunstâncias, muito depois.
Esconde-se o que é visto como obsceno.
As palavras escondem mais do que mostram. E as palavras serão sempre poderosas, sejam como terapêutica ou sintomas de obscurantismo.
Sontag tenta limpar o discurso da nébula que o endromina para deixar entrar a luz.
"A Doença como Metáfora - seguido de A Sida e as Suas Metáforas" (Quetzal), de Susan Sontag, combate a vergonha e o medo, doenças que subsistem no século XXI. A ler, de preferência de boa saúde.
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