Faça o seguinte: tente ficar alguns minutos, horas talvez, sem consultar o telemóvel ou subtraído de qualquer estímulo vindo de uma tela. Não agarre um livro, nem ouça música. Deixe-se ficar consigo.
Passado algum tempo, há um incómodo indefinível. Vai crescendo. Parecia aguardar uma oportunidade.
Essa visita sempre à espreita é sua, sempre esteve em si, foi nomeada há séculos. Chama-se melancolia e faz de si o “Homo melancholicus”.
É, tantas vezes, insuportável. E precisa de ser afastada. A acção tem esse efeito; as mãos ocupadas são o suficiente para distrair o cérebro. Quando a melancolia resvala para a depressão, os fármacos acionam mecanismos de defesa. Em outras ocasiões, a melancolia por enfrentar encontra no outro o escape perfeito. E há tantos outros nas redes sociais e a uma distância higiénica.
“(…) muita gente sente-se ameaçada e reage com irritação quando alguém não partilha da sua opinião, ofende o seu país ou questiona as suas tradições. A tela mostra que a melancolia se pode transformar em medo e agressividade, quando as coisas correm mal e o indivíduo se sente ameaçado por perigos reais ou imaginários.“, afirma Joke J. Hermsen em “Melancolia em Tempos de Perturbação”.
Neste ensaio publicado pela Quetzal, a escritora e filósofa neerlandesa dá-nos uma máquina do tempo com GPS. Vai lá atrás ouvir Aristóteles e avança até à modernidade, com a respectiva farmacologia, a auto-ajuda e as ubíquas redes sociais.
A melancolia vai da actual insaciedade de dizer tudo no Facebook e Twitter até chegar à acédia medieval, com passagens pelo “Weltschmerz” e pelo spleen do século XIX. De uma época a outra, de um nome a outro, comunga-se o medo, a carência e a perda.
Se o indivíduo encara tais sentimentos de frente e com fé no dia seguinte, não entra no jogo a perder. No entanto, se não pressentir luz, teme o que aí vem e o passo seguinte é a depressão.
“Cerca de quatrocentos milhões de pessoas espalhadas pelo mundo padece de transtornos de ansiedade e de estados de espírito sombrios (…)”
É sobre o tratamento da depressão que a autora entra por caminhos mais polémicos.
Além de alguns pensamentos mal ligados, quando pretende colar a ascensão de partidos populistas à melancolia, provocando solavancos na lógica, a abordagem à farmacologia é disruptiva. E ainda bem.
É quando a filósofa sai da abordagem diacrónica, com ligações entre teorias, e opina que se dá o sobressalto no leitor.
Até então do lado de fora, passivo embora atento, o leitor vê rompida a placidez.
A dado ponto, Joke J. Hermsen afirma nada a mover contra a medicação e defende a sua utilização em algumas circunstâncias. Mas é pouco mais de um parágrafo — diria uma “firewall” para possíveis críticas que pouco contrasta com o recurso a autores como Dehue, Lisa Appignanesi e Kierkegaard para justificar posição antagónica.
«Segundo Kierkegaard, a melancolia não se pode curar com medicamentos porque “só o espírito é capaz de a vencer.”»
Há um pensamento menos desenvolvido que passa despercebido, mas que pode justificar (sem ser preciso) a preocupação da autora com a medicação.
“De um ponto de vista económico, não se toleram as condutas divergentes ou improdutivas, porque todos têm de contribuir de forma activa para a economia, como conclui Dehue em “A epidemia das Depressões.”
A pressa em encontrar uma cura para a doença encontra no comprimido o atalho necessário para pôr o ser humano a produzir.
A relação entre medicina e melancolia e/ou depressão está muito presente neste ensaio, quase como uma questão mal resolvida no íntimo da autora. Mas “Melancolia em Tempos de Perturbação” é mais do que isso.
A melancolia é vista na sua relação com a infância, a arte, a ansiedade, a natalidade e a esperança.
Se a cura não é vendida nas farmácias, onde se pode encontrá-la?
Segundo a autora, “Andreas-Salomé enumera duas experiências humanas que podem transportar-nos de novo para o nosso eu interior, e ajudar-nos a fundir de novo com o mundo: o amor e arte.”
O “Homo melancholicus” tem tentado, desde os desenhos mais toscos, dar uma imagem ao “vazio barroco” que o atormenta. A melancolia está nas artes plásticas, na literatura, no teatro, na dança, na música, em qualquer qualidade de manifestação artística.
“Na opinião de Andreas-Salomé e de Nietzsche, a criatividade e o amor eram imprescindíveis para que a melancolia não assumisse uma forma patológica. A criatividade e o amor são necessários para estabelecer vínculos entre o mundo interior e o exterior, entre o superficial e o íntimo, entre nós e os outros.”
Joke J. Hermsen preocupa-se em se fazer entender. O hermetismo é, tantas vezes, esconderijo para quem nada tem para dizer. Não é o caso da autora neerlandesa. Não há sintomas de petulância.
A profusão de citações está longe de um mero “name dropping”. As palavras dos outros acrescentam e justificam.
Na posologia de “Melancolia em Tempos de Perturbação” não consta limitações de consumo. No entanto, há uma bula. E aí, nas letras pequenas, há nuances que interpelam a crença do leitor.
Fossem mais declaradas e teríamos uma bela discussão e um livro ainda melhor.
Fica uma exposição histórica e sincrónica da melancolia, desde a arte rupestre ao Tinder.
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