Do que falas quando falas de escrita?
Ao quarto livro traduzido em português, Leila Slimani(n.1981) passou os limites do epifenómeno e instalou-se num lugar certo e seguro.
“O Perfume das Flores à Noite” (Alfaguara) é uma despretensiosa visita aos bastidores da escrita de “No Jardim do Ogre”, “Canção Doce” e “O País dos Outros”.
O projecto apresentado por Alina, sua agente, veio ao encontro da necessidade imperativa de reclusão, de “dizer não e passar por misantropa, arrogante, doentiamente solitária”:
- Ficar fechada durante uma noite num museu em Veneza.
Em contraponto (e contradição) à necessidade de silêncio e reclusão, a autora, tal como Sándor Marai, pensa que não são as cidades nem as paisagens que interessam verdadeiramente; é nas pessoas, é na “mulher inglesa ou de um sapateiro toscano numa viela estreita perto da via Tornabuoni” que se encontra matéria de escrita.
No escuro das galerias, a sentir o chão nos pés descalços, a autora nascida em Rabat faz desfilar figuras da sua infância e desfilar-se, transmudada em personagem do seu livro.
Assim conhecemos a mão que nos dá as histórias; a mão que revela e esconde, a mão que gere o “chiaroscuro” de cada avatar, de cada palavra, de si própria.
“O que não dizemos pertence-nos para sempre. Escrever é jogar com o silêncio, é dizer, de maneira indireta, segredos que na vida real seriam indizíveis. A literatura é uma arte de contenção.”
Textos misturam-se com memórias de infância e adolescência e autores convivem com familiares desaparecidos. Principalmente com o pai. Tudo ali conduz a ele; a arte plástica, o silêncio, o som dos passos descalços, as sombras e a rara luz.
“Talvez seja essa a missão do artista? Exumar, arrancar ao esquecimento, entabular o diálogo diabólico entre o passado e o presente. Recusar a inumação.”
Depois de uma noite em que a solidão a obriga a confrontar-se, o perfume das damas-da-noite acompanha-a à saída; lá fora, distante das imperscrutáveis obras de arte, é sobre as pessoas que o olhar incide, um olhar vampiro a imaginar caminhos e palavras para serem delineados e escritas em silêncio.
Não espere o leitor um tratado teórico sobre a literatura. As ligações são mais afectivas do que intelectuais, o objectivo é mais sentir a pulsação dos textos do que dissecá-los com o bisturi da teoria da literatura.
É uma história sobre histórias; uma metalinguagem adaptada ao ouvido do leitor pouco avisado para os termos nebulosos da crítica literária. É uma história. E muito bem contada como é habitual em Leila Slimani.
O Perfume das Flores à Noite
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