Memória em carne viva.
No documentário “O Museu de Auschwitz” exibido há uns anos na RTP3, um neto disse à avó:
"Contaremos a tua história".
Na visita ao museu, a avó conta o que lhe aconteceu no campo de concentração. Era criança.
"Trago aqui os meus netos [dois pares de gémeos] para eles saberem o que aconteceu. Eles quiseram vir.
Vocês sabem o que aqui faziam aos gémeos, não sabem?"
Ao olhar para as fotos das crianças mortas no campo, disse-lhes de dedo em riste, "Vocês têm que continuar [a viver]. "
O neto mais novo abraçou-se a ela,
"Contaremos a tua história."
Na memória resistem os anticorpos à reinfecção. A responsabilidade de quem conta é igualada pela responsabilidade de quem ouve e não deve esquecer. Caso contrário, a distância temporal é alargada por quem desiste de contar e por quem desiste de ouvir. E tudo pode voltar a acontecer.
Neste exercício de memória, sempre em carne viva para quem sobreviveu aos campos, existem livros-documento como “A Madrugada em Birkenau” (Quetzal). Os testemunhos reunidos por David Teboul neste livro guardam a voz de Simone Veil (Nice; 1927), resistente de Auschwitz.
O livro organizado por Teboul não é mais um dos livros que comercializam a infâmia e se alimentam da curiosidade mórbida pelos mecanismos nazis de extermínio. Auschwitz vende.
Aqui, a memória é quase tudo. E é na sua manutenção que “A Madrugada em Birkenau” fundamenta a sua importância. Ainda que, nas palavras de Veil, a história fique muito aquém da experiência:
“Aquilo que hoje se vê não se assemelha ao campo [Auschwitz]. De maneira nenhuma. De qualquer modo, esses locais não traduzem as sensações físicas. O campo era o cheiro dos corpos que ardiam. Uma chaminé cujo fumo escurecia o céu. Lama por todo o lado. Galochas nos pés, nós nessa lama.”
Solilóquios, diálogos e fotografias compõem o mosaico a que o tema e a sua interveniente dão unidade. Coube a Teboul organizar os documentos de forma a dar-lhe uma narrativa coerente, numa visão de autor pouco ou nada denunciada. Ele existe na arrumação, na perspectiva.
Veil fala da sua infância, dos amigos e da família. As suas recordações vão desde as perseguições, passam pelo aprisionamento e vão até à libertação, ou melhor, até ao aprender a viver depois da libertação.
Cada um com a sua forma de ultrapassar o horror, cada um com estratégias de fuga ou confronto. Conta-nos Veil que havia uma fronteira a separar quem regressara dos campos e os outros. A um primeiro olhar, todos pareciam iguais, mas as reacções íntimas tornavam-nos diferentes. Uns tinham passado para o outro lado, o lado animalesco. Conta-nos também a vida nos campos de Draney, Auschwitz-Birkenau, Bobrek e Bergen-Belsen e o impacto que teve mesmo depois de já ter saído:
“Ao voltar do campo, senti-me profundamente diferente. Antes, era alegre, vaidosa, muitas vezes fútil. Pensava constantemente em pequenas coisas. Ao voltar, pus-me a marcar uma distância entre o essencial e o que não era. Pensava a cada passo: «Para quê?».
Tornei-me mais severa para com os outros, pois testava-os segundo esses novos critérios.”
“A Madrugada em Birkenau” reúne testemunhos corajosos, principalmente de uma mulher que adicionou muito do que o nazismo quis subtrair:
Foi magistrada, ministra da saúde, a primeira mulher presidente do Parlamento Europeu.
Como ministra, concretizou a “Lei Veil”, que despenalizou a interrupção voluntária da gravidez, em França.
Simone Veil morreu com 90 anos.
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