A escrita é uma actividade solitária, uma actividade de quem prefere chegar ao mais intrínseco do ser humano sem o fumo das convenções sociais. É praticada por indivíduos recolhidos em si próprios, enrolados para dentro, e exógenos à realidade mundana que os cerca. Para lá das interrogações sobre a execução física da escrita -de pé, sentado, ao computador, com um caderno – subsistem dúvidas: Quais as ansiedades dos escritores? Que problemas têm de ultrapassar?
“Suspense ou a Arte da Ficção” (Cavalo de Ferro) é a resposta de Patricia Highsmith.
Existem algumas respostas no mercado: Stephen King (Escrever- memórias de um ofício), Joyce Carol Oates (A Fé de um Escritor) e, em Portugal, Mário de Carvalho (Quem Disser o Contrário É porque Tem Razão) e João Tordo (Manual de Sobrevivência de um Escritor), entre muitos outros, iluminaram as dúvidas dos leitores e dos escritores, consagrados ou em início de carreira, com possibilidades.
Em “Suspense ou a Arte da Ficção”, a autora texana confessa logo de início a impossibilidade de se explicar como se escreve um livro bem-sucedido. Afasta a ideia de se ver esta obra como um livro de instruções. As suas reflexões, fundamentadas com os desafios que “O talentoso Mr. Ripley”, “O Desconhecido do Norte Expresso” ou “A Cela de Vidro” apresentaram, destinam-se “a escritores jovens e principiantes”.
A autora parte das fontes de inspiração e percorre o trajecto até às preocupações comerciais e ligadas ao vil metal, sem relegar a importância de “captar a atenção do leitor contando-lhe algo divertido ou que valha a pena dedicar uns minutos ou umas horas.”
Patricia Highsmith promete e cumpre. Este breve ensaio é uma visita guiada à “casa das máquinas” de quem sabe do ofício, como poucos escritores, na área do suspense. O percurso é aprazível muito devido ao princípio tão norte-americano de não perder o leitor de vista, de comunicar com ele. Para que escritor e leitor comuniquem a linguagem é informativa, simples e até lúdica:
“Uma coisa é certa: o público, os leitores, os espectadores televisivos querem entretenimento, ficar presos a uma história. Querem algo invulgar, que fique gravado na sua memória, que os faça estremecer, rir, que seja tema de conversa e possa ser recomendado aos amigos. Entre a semente de uma ideia e um público vasto e elogioso vai um longo caminho.”
A autora entrega-nos histórias sobre os seus livros desde a concepção, passando pelo parto até à emancipação.
Tudo é material de escrita, tudo está em potência antes da filtragem pelo tempo. As experiências pessoais eram fonte primordial dos seus contos. Mas também as palavras dos outros e os acontecimentos que arrebanhava em segunda mão. Histórias miscigenavam-se com outras histórias na criação de um corpo a ser desenhado pela escritora.
Highsmith descreve- tanto quanto possível num livro de 143 páginas – o princípio, o desenvolvimento do enredo e a sua conclusão, após várias versões. Não deixa de apontar obstáculos nem de sublinhar angústias inerentes a cada revisão.
“Não é avisado contra-argumentar, pois o editor, provavelmente, sabe mais do que nós e tem a vantagem de discutir a questão com muitas outras pessoas na editora. É surpreendente a quantidade de escritores principiantes que se enfurecem com pedidos corriqueiros como estes, ou quando solicitam que eliminem uma personagem de um livro. Por vezes, agastados, cortam relações com os seus agentes literários ou retiram o manuscrito à editora.”
Uma das características mais interessantes é a ausência de pudor (tão presente em Portugal) quando aponta para a comercialização das obras. A autora chega a sugerir a adequação do texto às características do mercado. Na expectativa de sustento, a literatura vai além da necessidade de organizar a vida numa narrativa escrita.
“Caso tenha em mente um determinado mercado, o melhor é a obra ter a extensão adequada logo de início.”
É uma perspectiva global desde a génese ao consumo. Sem prurido.
“Suspense ou a Arte da Ficção”, publicado ela primeira vez em 1966, é uma janela para os bastidores do livro, este e outros; é uma espreitadela para o local de trabalho do escritor, por convite do mesmo.
O leitor deixa o texto para observar a mão que o escreve.
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