Andar nu pela vida
Os mais fortes de memória lembrar-se-ão das fotos onde Valter Hugo Mãe (Saurimo, Angola; 1971) se expõe sem pano nem timidez. Foi onde mais se desvelou física e publicamente. No entanto, se ao olhar fizer falta um conhecimento mais apurado, deve ir além da pele. Se a curiosidade tem fome de alma, então anseia por livros ditados pela vida.
O medo reside em quem faz das palavras o principal acesso às memórias mais esconsas. Com o escritor fica o medo do ridículo, o medo de se escangalhar, feio, sob o olhar de quem lê. E, no entanto, não deixa de se expor aos leitores, a ele também, num mundo habitado por gente resgatada ao esquecimento. Tudo vai ficando claro ao olhar de quem conta e ao olhar de quem lê. No fim, o escritor revela-se sob uma luz mais ou menos cruel, com um filtro inversamente proporcional à honestidade, ocultando ou não o sangue que tem para dar. Tem sido assim com a criação literária de Valter Hugo Mãe, seja na poesia ou na prosa.
No primeiro número da Granta (“Eu”, 2013), Valter Hugo Mãe confidencia:
“Ando a pensar que a poesia acontece como expressão súbita que me leva até o que eu não sabia de mim, não saberia admitir. A prosa é mais cerimoniosa. Pede mais licença. Disfarça-me um pouco, não é tão repentina que me faça sentir roubado, acusado ou ridicularizado”
Em entrevista a Carlos Vaz Marques (Revista Ler, Março de 2020), o jornalista declama um poema de Valter Hugo Mãe:
“devias morrer no dia dezoito de março de/ mil novecentos e seis, como dizes que/ vai acontecer, para que se acabe essa/ imprecisa sentença que é a vida”
“Sim”, respondeu o autor, “Isso é também, em muito, a realidade de a máquina de fazer espanhóis”.
Depois de sair, em 2018, “Publicação da Mortalidade”, onde são reunidos os seus melhores poemas, surge-nos a ideia de haver uma noção ou necessidade de retorno ou mesmo de balanço. De onde vem essa necessidade que, em boa verdade, não é de agora?
Em todos os seus livros o autor se desenrola. A poesia é onde se sente mais exposto, mas dificilmente haverá mais exposição, ou, pelo menos, exposição mais compreensível do que a existente em “Contra Mim” (Porto Editora). Há livros que são mais espelhos do que outros.
Em entrevista a Maria João Costa, na Rádio Renascença, afirmou que
“Este ano pandémico solicitou-me uma revisitação à pessoa que eu quis ser, de maneira a eu voltar a afinar ou ganhar coragem para um regresso franco aquilo que são as minhas pulsões mais naturais.”
As histórias e as pessoas que formaram Valter Hugo Mãe vêm à tona e apresentam-se ao leitor. Em consequência, há exposição como nunca houve. O autor sai do esconderijo dado pela ficção e revela-se como um homem imprudentemente poético. Mas é nessa sua humanização que reside grande parte do mérito deste texto literário.
A melancolia e sensibilidade de outros livros são mantidas, mas com denúncia declarada: Este livro é sobre ele próprio e é sobre as pessoas que habitaram a sua infância. É um nu retratado em espaço interior.
“Contra Mim” mistura as primordiais cores garridas africanas com a infância em Paços de Ferreira e o começo da adolescência em Caxinas. São dois livros num só; duas fases em que a passagem geográfica é acompanhada pela passagem da fronteira entre a infância e a adolescência. É o autor no seu desamparo de criança, na crença inabalável nas palavras, juntas na procura de parcerias imprevistas, e nas pessoas que o formaram. Pessoas e acontecimentos, indissociáveis no sonho e na violência.
A narrativa é um melancólico elogio do espanto perante a vida que se lhe depara e tantas vezes o atravessa sem piedade; é a voz autoral a contar as reguadas na escola e o braço partido do colega, a relembrar o cristo resgatado ao lixo, a mostrar a ânsia do divino na redenção de tudo, o terror dos louva-deus, o interesse na recolha de expressões e hábitos dos familiares e, principalmente, é a voz de quem parece ser assaltado por tudo. Um diálogo com os mortos, tal qual afirmou na página 98, que detinham a propriedade do seu irmão Casimiro, esse “menino horizontal” que “estava ali deitado à espera que uma árvore grande nascesse e chegasse até ao céu.”
Também Valter Hugo Mãe, na capa, se apresenta despojado de roupa, sentado, raiz de árvore com palavras a tentar chegar ao firmamento.
A obra de um escritor necessita da aceitação da crítica, da academia e dos leitores. Valter Hugo Mãe tem sido multipremiado pelos júris, aceite consistentemente pelos leitores e vê, como aconteceu em “Nenhuma palavra é exata- estudos sobre a obra de Valter Hugo Mãe” (Porto Editora), a sua obra estudada e sujeita à exegese mais demorada e exigente.
Desta vez, demorou-se a observar as histórias que o fizeram escritor.
Enfrentou o medo de se expor, misturou palavras com doses generosas de empatia, sensibilidade e poesia. Saiu um belo e revelador livro.
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