A Humanidade em várias vozes.
Vejamos uma mancha. Não no sentido pejorativo, mas um
conjunto de pontos que a visão não consegue distinguir a certa distância. É uma
mancha. Tem uma determinada cor e forma. Não sabemos de onde veio nem qual o
seu objectivo. Ou intuímos, caso seja uma mancha orgânica, uma estrutura
social, digamos. Aproximemo-nos. Mais um pouco. Começamos a prestar menos
atenção à forma global e detemo-nos sobre as particularidades do que estamos a
ver. Continuemos a aproximação. Há pontos regulares e irregulares; há uns maiores
e outros mais pequenos; uns assonantes outros dissonantes.
Uma sociedade é uma mancha orgânica, volátil, e composta por individualidades.
Se a sociologia trata do conjunto, a psicologia trata do individual, mas
nenhuma das duas disciplinas é capaz de usar a verdade tecida com a ficção para
mostrar, em simultâneo, o geral e o particular.
Bernardine Evaristo (n.1959) aproximou o seu olhar, observou as
dissonâncias e contou-as com singularidade. O resultado foi uma constelação de
personagens marginais e memoráveis.
A autora nascida no sudeste de Londres eleva a linguagem tantas vezes informal,
tão próxima da oralidade e das frases agramaticais, a literatura de elevado
grau.
“Rapariga, Mulher, Outra” (Elsinore) não é manso nem domesticado. Os avatares
afastam a dormência do leitor. São inquietantes e espelham as idiossincrasias
sociais numa narrativa em mosaico sem pretensão de espartilhar as diferenças. A
narrativa organiza-se de acordo com o tema essencial: respeito e interesse pelo
individual declinados em diferentes perspectivas.
Há uma intrínseca defesa das minorias na prosa de Evaristo. E isso pode-se
constatar logo na dedicatória:
“Para as manas & as babes & as sistahs & as mulheres
& as divas & as deusas & as damas & os malandros & os manos
& os damos & os cavalheiros &os homens & os brothas &
a irmandade LGBTQI+.”
A ligação entre histórias depende mais da temática do que da interacção entre
as 12 personagens (embora essa interacção seja importante no
epílogo). Amma, Shirley, Carole, Bummi, Yazz, Dominique, LaTisha, Penelope,
Megan/Morgan, Hattie e Grace desajustam o eixo do
pensamento normativo. O mundo não é uma projecção adequada ao
conforto de cada um. O mundo é composto por diferentes tipos de pessoas, com
seus credos, cores, escolhas sexuais, de género, de vivência e núcleos
familiares. É uma mancha policromática, formada por “pixels” diferenciados. Nas suas histórias existem família, maridos, mulheres, amigos e
amantes a viver numa sociedade multicultural. Se doze personagens centrais já
seriam matéria-prima mais do que suficiente para Bernardine Evaristo
desenvolver diferentes personalidades, ainda mais rico ficou “Rapariga, Mulher,
Outra” com personagens secundárias (mas não planas) como Nzinga.
Num dos momentos mais bem conseguidos no romance, é uma fugira secundária- mas
impactante- a demonstrar a possível utilização de “bandeiras” para a
concretização de objectivos pessoais. Nzinga é
manipuladora, ciumenta, agressiva e seca tudo à sua volta. Os seus ideais de
veganismo e feminismo são, acima de tudo, uma arma para conseguir os seus
intentos. Alimenta-se dessas ideias; não tem a defesa das mesmas como
primordial. Quantas vezes assistimos a isto na imprensa, televisão ou rádio?
Evaristo está muito longe de uma ficção assente em
teorias sociais. A sua prosa respira entre a comunidade, caminha nas ruas dos
subúrbios, vincula-se às pessoas e às respectivas realidades. Mais do
que um romance assente em teorias, “Rapariga, Mulher, Outra” está vinculado à
vida, está vinculado a quem se sente marginalizado.
A ligação entre psicologia e sociologia, entre a pessoa e as suas
circunstâncias, como disse Ortega Y Gasset, é o “leitmotiv” de Bernardine Evaristo.
“Me Too” e “Black Lives Matter” não são debatidos numa perspectiva académica.
São demonstrados nas vivências das personagens recriadas – ou mesmo
transferidas- para o romance vencedor do Man Booker Prize 2019.
Por vezes, o leitor tem a felicidade de ser surpreendido por vozes diferentes com capacidade de o motivar a ouvir. Bernardine Evaristo
é uma dessas vozes.
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