Tantas são as vezes em que lemos a biografia de um escritor e vemos a pobreza ou os desequilíbrios emocionais filtrados pelo romantismo. É uma panaceia para quem deseja enveredar pelo mesmo caminho. A decrepitude é genial, pois provém da divina bênção dada a quem tem pouco trabalho, muita indolência e toque de midas. Tudo parece natural, mas quando alguém demonstra as dores de crescimento, as dores inerentes ao processo de criação, o leitor tem um vislumbre da realidade por vezes suja de como tem de viver o demiurgo. É o verdadeiro curriculum vitae de, digamos, um escritor.
Drogas, álcool, problemas económicos, insegurança são cicatrizes raramente expostas por um escritor num festival literário, numa sessão de autógrafos, ou numa entrevista televisiva.
O resultado é o mais importante; o resultado deve estar acima de todas as dores. No entanto, é possível encontrar intermitentes assomos de coragem. Vemos isso em “Escrever - memórias de um ofício”, de Stephen King. O livro do autor de “Shining” saiu quase em simultâneo, em Portugal, com o “Manual de sobrevivência de um escritor”, de João Tordo. O autor português afirma ter o livro de Stephen King como influência e apoio, juntamente com “Poética”, de Aristóteles, “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Maria Rilke, “Cartas a um jovem escritor”, de Colum McCann, “Quem disser o contrário é porque tem razão”, de Mário de Carvalho, entre outros de Annie Dillard, Joyce Carol Oates e Marie Anna.
Por vicissitude de terem sido editados e lidos em simultâneo, a comparação entre o livro de Tordo e King é inevitável. Embora o do escritor norte-americano seja revelador, não atinge a capacidade comunicativa e claridade do livro de João Tordo.
O vencedor do Prémio José Saramago, em 2009, aponta as feridas para o leitor descrer na falácia da ideia de criação como resultado de uma prenda divina.
Um escritor faz-se muito novo, afirma, mesmo que comece a escrever tarde na vida. A vida é matéria primordial e, para isso, é preciso tê-la vivido, é preciso ter as cicatrizes de quem tem muitos dias às costas.
“É quase cruel dizer isto, mas, embora não seja condição sine qua non, ajuda bastante ter uma infância difícil, ou emocionalmente conturbada. Procurem, nas origens dos vossos autores favoritos, por sinais do desastre iminente, pela ferida mais profunda. E o mais certo é que os encontrem.”
Seja como for, a escrita não se resume à autoficção. Não é por a origem das suas personagens, ou, pelo menos, as características das mesmas fundarem-se em feridas de infância, que tudo é sobre acontecimentos vividos por quem escreve. As palavras de um escritor não tratam do real; incidem sobre o verdadeiro. São distintos e podem estar muito afastados um do outro. É nessa procura da veracidade que o autor se vai revelando, ou como diz João Tordo quando lhe perguntam sobre o que tratam os seus livros: É sobre ti, o escritor.
Livro após livro, o autor tenta descobrir-se. É um caminho doloroso, com vitórias e derrotas, avanços e recuos, insegurança e realização.
“Já dei por mim a dar pulos de satisfação por causa de um dia em que a Musa esteve comigo, e a duvidar de tudo, insone e deprimido, porque me vi bloqueado em determinado momento do processo.
Acredita em mim: faz tudo parte do ofício”
"Manual de sobrevivência de um escritor” é um livro que explica como se utiliza um “martelo”, uma ferramenta. Não é um livro de teoria da literatura, um livro em que se explica como se faz o metafórico martelo. Desde a pergunta “O que é um escritor?” passando pelo enredo, tema, técnica, edição, o dinheiro, os contractos, a crítica e a inveja, o leitor viaja pela realidade nada ficcionada de um autor que vive da sua escrita. E, acredite, sai mais lúcido quando finda a última página.
Sublinhe-se a honestidade e abertura de João Tordo. Em “Possíveis Interacções”, último capítulo, é mencionada a influência do álcool e das drogas na produção escrita e na vida pessoal.
Já em “O lado negro da força”, é confidenciada a principal preocupação deste escritor que vos aconselha. Não é a técnica, o enredo, ou a crítica. É a sobrevivência.
“A menos que tenhas a sorte de escrever um bestseller à primeira, e vender centenas de milhares de exemplares (o que, habitualmente, significa que escreveste um livro mauzito), a tua carreira de escritor será marcada pela luta constante e pela ameaça de penúria sempre a dourar o horizonte com a sua promessa de despejo.
Não importa quanto te esforces”
Mas é quando aborda o alcoolismo que mais se expõe (João Tordo publicou também um pequeno ensaio na Fundação Francisco Manuel dos Santos. Em “Que nós estamos aqui – 12 passos para a recuperação”).
No último capítulo do livro são dados exemplos de dependência sofrida por Carver, Hemingway, Bukowski, Poe, Cheever, Faulkner, Dylan Thomas, Fitzgerald, Joyce. E Tordo. Eis, possivelmente, o melhor conselho escrito em “Manual de sobrevivência de um escritor”:
“Seja o que for que aconteça na tua vida de escritor, não bebas em excesso. O mesmo para as drogas. Se o fizeres, fá-lo-ás por tua conta e risco, sem ilusão de que isso te aumentará a criatividade ou a patine de mistério. E digo-te, por experiência própria, que o teu trabalho piorará.”
Se o candidato procura uma luz a guiá-lo pelo labirinto que o levará a ser escritor, não ficará desiludido com “Manual de sobrevivência de um escritor”. É um guia claro, pedagógico e honesto. João Tordo não desvia o olhar de quem o lê. Sabe que tem um receptor de uma mensagem; sabe que deve explicar, como numa das suas aulas práticas sobre literatura, a informação de forma pragmática, próxima das expectativas de quem lê. E não desilude.
Há um mantra neste ensaio:
“Portanto, tu queres ser escritor”.
Então este livro é uma preciosa ajuda.
0 Comentários