Entra-se sem se saber
como e não se dá com a saída. O “Mocho Cego” (E-Primatur) é um labirinto em
constante transformação, desafiando as leis da lógica.
Envolvido pela neblina
do ópio, o narrador vai dando conta dos mais honestos e profundos medos, dos
anseios e das inquietações.
É escusado tentar usar a lógica como bússola. Estamos num sonho opiáceo e devemos suspender a nossa relação com o mundo ordenado.
É escusado tentar usar a lógica como bússola. Estamos num sonho opiáceo e devemos suspender a nossa relação com o mundo ordenado.
“Fumei várias vezes o
cachimbo de ópio e, num estado extático, olhei fixamente para as imagens.
Estava a tentar concentrar-me e só o fumo etéreo do ópio poderia concentrar os
meus pensamentos e aliviar-me deles.
Fumei todo o ópio que
me restava (…)”
O narrador está preso
à loucura alimentada por um triângulo amoroso: ele, um homem mais velho e uma
rapariga. A narração desenvolve-se através de sonhos, visões e paranóias. Os
ataques de pânico criam um ambiente opressivo e claustrofóbico.
O estado onírico propicia
a quebra de “leis” que amarrariam a narrativa. Sadeq Hedayat (1903-1951),
considerado pai da literatura moderna persa, solta-se dessas amarras e dá
azo à concatenação de imagens e sentimentos. Não é uma linha previsível; há
várias cheias de nós e entrelaçadas até ser difícil distinguir o princípio e o
fim de cada uma delas.
Passado, futuro,
horas, dias, meses e anos são o mesmo para o narrador.
“Os olhos que estavam
enterrados perto da montanha, junto ao tronco do cipreste ao pé da margem do
leito seco do rio, os olhos que estavam debaixo de lírios negros, entre o
sangue espesso, no meio do festim de animais e insectos, os olhos que,
antes que as longas raízes de plantas os penetrassem e sugassem, estes olhos,
cheios de vida vigorosa, estavam a olhar para mim”
Todos os tormentos são
registados através da escrita. Esta pulsão tenta dar uma ordem e proporcionar
alguma sanidade ao narrador enquanto arrasta para fora o inimigo que lhe tortura
a alma. No entanto, ao longo do texto percebe-se a resistência do inimigo,
sagaz, matreiro, e que a sanidade se escapa entre luz e sombras.
O ostracismo a que ele
se vota assenta num profundo desprezo pelo Outro, por quem atravessa a vida
sobre águas calmas nas mansões, mesquitas, jardins, mas também pelas
milhares de ruas, casas modestas, madrastas da cidade de Ray. A
estes, o narrador apelida de ralé. Vê-os através da janela do seu quarto. É
atrás dela que avalia o execrável -para ele- mundo exterior.
“O tempo perde o seu
significado para alguém que vive numa sepultura. Este quarto era a sepultura da
minha vida e do meu pensamento. Para mim, todas as actividades, todos os
sons, a vida pretensiosa dos outros, a vida da ralé, moldados física e mentalmente
da mesma forma, eram estranhos e sem significado. Dado que estivera acamado,
acordei num mundo estranho e incrível, no qual não havia necessidade para o
mundo da ralé. Eu própria era um mundo, um mundo cheio de mistérios, um mundo
que eu me sentia compelido a examinar em todos os seus recantos e fendas.”
Mas o núcleo da sua
inquietação é outro: a mulher do triângulo amoroso a quem ele chama de “puta”.
“De qualquer forma, eu
era uma criança pequena quando fui confiado à ama que cuidou da minha prima, a
mesma puta que é agora minha mulher. (…) “Refiro-me a ela como «a puta» porque
nenhuma outra designação lhe assenta tão acertadamente como esta palavra. Não
quero usar «a minha mulher», porque entre nós não havia relação marido-mulher.”
Sadeq Hedayat puxa-nos
para esta vertigem de que não queremos nem conseguimos sair.
“O Mocho Cego” não nos
liberta enquanto não chegarmos ao fim. E, mesmo ultrapassada a última página,
há algo desta embriaguez química que nos fica a rondar na mente.
O regime islâmico quis
proibir esta novela, pois defendia que a mesma induzia os leitores ao suicídio.
Teve o efeito contrário. “O Mocho Cego”- forma da sombra
que atormenta o narrador- tornou-se um mito e num livro de culto.
140 páginas são a
medida certa para esta vertigem proposta pelo autor considerado igual a Sartre
e Kafka. Um livro de grande originalidade.
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