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"Almanaque da Língua Portuguesa" e "ABC da Tradução", de Marco Neves





A inteligência necessária para compor e utilizar uma linguagem chega a patamares milagrosos.
Toda a plasticidade cerebral existente demonstra a inata capacidade do ser humano para decliná-la em línguas. Teóricos (Chomsky, Krashen, Lewis...) apontam a luz para conhecermos o “hardware” pré-existente, mesmo ainda no útero, e o “software” (adquirido ou também pré-existente).
A capacidade de exercer uma linguagem verbal não se resume a meia-dúzia de iluminados. É património comum da espécie humana. Talvez por ser tão omnipresente e, em consequência, banalizada,  é vista como um dado adquirido. O falante não pensa muito sobre isso nem se preocupa em detectar os desvios da norma no acto de comunicação.

A conjugação entre sons permite o nascimento de palavras, das palavras nascem frases. Formam-se as línguas a partir do “apparatus” existente. Dentro dessas línguas pulsam povos e épocas com todos os seus hábitos culturais. Cada acto de comunicação envolve história da humanidade.
Toda a construção obedece a regras mais ou menos complicadas, mais ou menos perceptíveis. Dentro dessa lógica há espaço para o absurdo desarrumar pensamentos.


Temos o conhecimento comunicativo, adaptado a estratos sociais, a comunidades, tal qual tribos, com os seus elementos e respectivos idiolectos. Mas, muitas vezes, não temos o conhecimento linguístico. Utilizamos as regras, mas não sabemos porquê. Assimilámos sem nos interrogarmos. Pensar nisto e pensar na necessidade de transpor todas as regras e culturas para uma outra língua assemelha-se a uma tarefa para semi-deuses. Não é preciso tanto, mas não deixa de ser um trabalho de filigrana, a cujos artífices chamamos tradutores.





Marco Neves publicou dois livros nos dois primeiros meses do ano que iluminam alguns aspectos particulares da língua portuguesa e que, de forma objectiva, proporcionam ferramentas para levar a cabo uma tradução.
“Almanaque da Língua Portuguesa” e ”Abc da Tradução”, ambos da editora Guerra e Paz, são propostas do autor do blogue “Certas Palavras”.

Na primeira proposta, as pequenas irritações, aquelas “preciosidades” linguísticas capazes de nos fazer respirar fundo, juntam-se a breves explicações sobre fenómenos inexplicáveis até agora.
Queria ou quer? Um copo de água ou um copo com água? E feira? Porquê segunda-feira, terça-feira, quarta-feira? Se segunda é o primeiro dia da semana, porque não se chama primeira-feira? E afinal já estamos numa década diferente?


O leitor encontrará respostas no “Almanaque da Língua Portuguesa.”
Marco Alves escreveu “um calendário anual, com datas importantes, mas também indicações úteis e ainda textos «amenos e variados»” Segundo o autor, “é um livro para aprender e para usar todos os dias.”

Cerca de 200 páginas claras e de efeito prático vão esclarecendo perguntas antigas, de criança, para as quais, tantas vezes, não temos respostas. Marco Neves não perde de vista o leitor, sabe que tem do outro lado alguém cuja atenção precisa de ser captada e mantida. Consegue-o. “Almanaque da Língua Portuguesa” é um livro divertido e informativo. Nada de academismos. É feito de informação explicada ao “comum dos mortais.” Calma, parece dizer, por vezes as línguas não são lógicas. Não se preocupem. Divirtam-se com isso. “Almanaque da Língua Portuguesa” é um bom companheiro para o fazerem.




Ainda com maior preocupação operacional é ”Abc da Tradução”. É um instrumento para tradutores, talvez até um excelente instrumento para os iniciantes. Mas fica-se quase por esse mercado. Defeito? Nem por isso. O próprio título estreita o relacionamento do livro com possíveis destinatários. Não engana, ou para usar um falso “amigo”, não cria ilusões.

“Abc da Tradução” é um conjunto de textos- muitos publicados em “Certas Palavras” e no portal Sapo 24- sobre o que faz um tradutor e o que faz um gestor de projectos.
“E assim visitamos o País da Tradução e Arredores.”, diz o autor.
Os problemas e peculiaridades da tradução são explicados da mesma forma que os problemas linguísticos de “Almanaque da Língua Portuguesa”: De forma clara, por vezes lúdica, sempre instrutiva.

A relação com este livro é claramente instrumental. Para quem começa, há sugestões de trabalho e dicas para evitar armadilhas linguísticas. Será muito útil para o novato; talvez seja redundante para quem já habita esse “País da Tradução.” Muito se pode dizer no âmbito da Teoria da Tradução, das dificuldades da “terra de ninguém” entre a língua de partida e a língua de chegada. Não é esse o objecto deste livro. Marco Neves reúne ferramentas e dá algumas instruções como utilizá-las.

O leitor não encontra Voltaire, Cícero, São Jerónimo ou Walter Benjamin. “Abc da Tradução” apresenta o novato às “CAT tool («computer-assisted translation tool»), às memórias de tradução, com suas garantias de qualidade, ao reconhecimento óptico de caracteres, aos recursos de pesquisa em linha, ou mesmo aos motores de tradução automática. É um livro para se meter “mãos à obra”; não é um tratado filosófico ou histórico da tradução.
Se é muito ou pouco útil, depende dos conhecimentos do tradutor. Marco Neves faz a sua parte: Dá um simples e claro manual de instruções e conselhos.

Dois livros com méritos distintos, mas sempre bem conseguidos. Um para todos, outro para quem faz ou quer fazer da tradução o seu mundo.

Texto publicado em https://www.comunidadeculturaearte.com/marco-neves-artifice-das-palavras/

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