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‘O Sol na Cabeça’, de Geovani Martins: um livro com cheiro a favela






É o Brasil mal-escondido, o Brasil dos que lutam para existir.
Cheira a favela desde a primeira página de “O Sol na Cabeça”. Geovani Martins (Bangu, 1991) leva-nos pelos meandros das existências mais pueris dos chapados, cracudos, trincadãos, vapores e demais habitantes da cracolândia. É o Brasil mal-escondido, o Brasil dos que lutam para existir.

Geovani Martins tem 27 anos e é um fenómeno. Começou a ser notado na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em 2017. António Prata, autor publicado em Portugal pela Tinta-da-China, aconselhou a editora Companhia das Letras a publicar o novato. A Companhia das Letras, tanto no Brasil como em Portugal, viria a publicar “O Sol na Cabeça”, colectânea de 13 contos.
Ainda não tinha sido lançado no Brasil e, segundo a DW Brasil, já tinha os direitos vendidos para nove países. Geovani Martins entrou no mundo literário de rompante. Ele é da favela e é da favela a forma como pensa, o colorido da sua linguagem, os assuntos dos seus textos. Foi a sua mudança para o Vidigal, zona sul do Rio de Janeiro, que motivou a escrita destes contos.

A maioria das narrativas fundamenta-se na sobrevivência dos favelados. O preconceito, a violência, a droga, os assassinatos, a corrupção da polícia são substracto de histórias bem contadas, com uma linguagem que demonstra a existência de tantas tonalidades (ou pluralidade) na língua portuguesa. As assimetrias entre morro e asfalto são expostas por quem conhece a realidade e por quem a sabe contar.

“É foda sair do beco, dividindo com canos e mais canos o espaço da escada, atravessar as valas abertas, encarar os olhares dos ratos, desviar a cabeça dos fios de energia elétrica, ver seus amigos de infância portando armas de guerra, pra depois de quinze minutos estar de frente para um condomínio, com plantas ornamentais enfeitando o caminho das grades, e então assistir adolescentes fazendo aulas particulares de tênis. É tudo muito próximo e muito distante. E, quanto mais crescemos, maiores se tornam os muros”.





Há contos muito bem conseguidos como “Espiral”, em que o preconceito molda a vivência do narrador, “Roleta Russa”, com a afirmação da masculinidade e emancipação relacionadas com o perigo das armas de fogo, ou “Sextou”, em que a corrupção das forças policiais é dominante. A periferia é o centro destas narrativas; da linguagem sobre o preconceito e sobre o racismo fez-se literatura. “O Sol na Cabeça” é realista, sim, mas sem romantização da pobreza, ou de raiva ostensiva e demasiado gráfica. As personagens são as narradoras, o que aproxima ainda mais o leitor de uma realidade urbana que, no caso do leitor português, só existe como atenuada em localidades mal-afamadas. Da periferia vê-se o cerne: toda a cidade tem a droga no seu sangue. E dela depende.

– Isso é porque o mundo tá drogado, irmão. Até parece que tu não sabe. Já te falei, vou falar de novo: uma semana sem drogas e o Rio de Janeiro para. Não tem médico, não tem motorista de ônibus, não tem advogado, não tem polícia, não tem gari, não tem nada. Vai ficar todo mundo surtando de abstinência. Cocaína, Rivotril, LSD, balinha, crack, maconha, Novalgina, não importa, mano. A droga é o combustível da cidade.”

Prolifera na prosa de Geovani a energia indisciplinada e orgânica de rua. A linguagem rompe as regras gramaticais tal como os transeuntes quebram leis. Uma e outra estão ligadas por uma dinâmica social paralela, epidérmica, que se sugere à normatividade do morro.

Fossem estas páginas de menor qualidade e poderiam ser usadas como seda, bem rasgadinhas junto à lombada, para serem enroladas com maconha. Mas não. Cheira a macumba e a erva, mostra com palavras uma cidade dependente de substâncias psicotrópicas, é de qualidade e merece ser poupada. Refiro-me a “O Sol na Cabeça”, promissora estreia de uma voz das ruas. Uma voz pertinente, carregada de actualidade e de diferentes tonalidades que merece ser ouvida. Uma voz com muita gente dentro.

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