“Eliete - uma vida normal parte I” (Tinta-da-China) tem tudo para ser um livro aborrecido. Só que é escrito por Dulce Maria Cardoso. É a capacidade da autora que afasta o livro do fracasso e faz dele um dos melhores de 2018.
Desvendar o espaço que nos separa das outras pessoas é uma das maiores conquistas do novo romance de Dulce Maria Cardoso (n.1964). Depois de “O Retorno”, a escritora nascida em Trás-os-Montes apresenta-nos Eliete, personagem principal nesta cartografia sobre a solidão.
Eliete é uma mulher normal. Podia ser nossa vizinha, podia ser até um de nós. A sua família é composta por avó, mãe, marido e duas filhas. E muito espaço por preencher entre todos os elementos. O pai morreu ainda Eliete era criança. Tornou-se um herói como só os que morrem jovens conseguem ser. Com o crescimento, ela foi desmanchando essa imagem e juntando uma outra, sempre incompleta, de um ser humano com defeitos.
A vida de Eliete é uma vida trivial, preenchida por uma profissão que lhe dá alguma segurança, mas também desconsolo, e um casamento em que não se sente feliz, mas sem chegar à ruptura. É uma mulher mal-amada dentro de um contexto pueril. Até um dia perceber que essa normalidade a aprisiona. A ruptura é lenta, paulatina, mas perene. Nada será como antes.
“Eliete – uma vida normal parte I” (Tinta-da-China) tem tudo para ser um livro aborrecido. Só que é escrito por Dulce Maria Cardoso. É a capacidade da autora que afasta o livro do fracasso e faz dele um dos melhores de 2018.
É mais fácil (ou menos difícil) escrever sobre rupturas. O incesto, o crime, determinado acidente é material evidente. Já sobre a banalidade inerente ao quotidiano, sobre a anestesia injectada pela rotina, a marca de autor(a) faz a diferença. Dulce Maria Cardoso mostra a sua mestria na análise fina aos comportamentos, no seu decifrar e, sempre, na deíctica de que os movimentos mais banais sublinham a constante incapacidade de eliminar a solidão.
“(…) sentia-me inconsolavelmente só, como se a história da osga me tivesse dado a consciência súbita e aguda da prisão que cada cabeça era, que cada vida era, cada um de nós entalado na sua vida, na sua cabeça (…)”
A narração na primeira pessoa intercala a infância sob a sombra de Salazar, da Revolução, e de como a falta de meios materiais a impedia de ter mais conforto, com o meio da sua vida, em que a paixão pelo marido desaparece juntamente com a juventude, e os sonhos são afastados por duas crianças cada vez maiores, mais adolescentes, mais distantes. Da censura passou-se à ostentação de todas as formas de comunicação, através do Instagram, do Tinder e do Facebook.
Ao criar um perfil no Tinder, e após um match, Eliete afirmou já não estar só. A realidade escarnece do desejo, a irrealidade alimenta-o. Não há profundidade nem empatia; há artificialidade e aparência. E assim Eliete (através da personagem Mónica e com fotos falsas) vagueia nas redes sociais, alimentando e satisfazendo o desejo de ser uma outra pessoa, num outro contexto. O resultado é o mesmo que sentira quando assistiu ao golo do Éder na final do Europeu: um desajustamento com a normalidade.
É o pós-Retorno, sem deixar o Antigo Regime cair no esquecimento. Salazar “emoldura” esta história. Aliás, mais do que emoldurar — com menções fulcrais no princípio e no fim do romance — o antigo ditador parece ser uma presença fantasmagórica na identidade individual e colectiva dos portugueses. Somos ainda produto desse tempo?
Em entrevista à TSF, Dulce Maria Cardoso afirmou:
“O romance, para mim, é sobre a identidade e ao questionar-me sobre a identidade, a da Eliete, a minha, e por arrasto a do país, eu percebi que era herdeira do Salazar. Possivelmente seremos todos.”
Essa identidade é desenhada a partir do ditador, passa pela descolonização, e delineia uma geração que nunca viveu a miséria, nem a guerra; uma geração viciada em subsídios da CEE. Os acontecimentos posteriores a um optimismo embriagante viriam a resultar numa crise intensa, que levaria à vinda da troika. Estamos numa nova fase da escrita de Dulce Maria Cardoso. E a personagem por si criada ainda não disse tudo o que tinha a dizer. Há muito mais para ser contado.
Eliete faz sombra sobre as personagens dos livros que vierem a seguir. É necessária uma espécie de “ressaca” para o leitor voltar a entrar num outro ambiente, ocupado por outros avatares. Não é a história que conquista o leitor. É a forma como Eliete é construída e como a história é contada.
Dulce Maria Cardoso inscreve-se na literatura portuguesa ao lado de escritores e escritoras como Hélia Correia, Lídia Jorge, Mário Cláudio, ou Maria Velho da Costa.
Texto publicado em: https://shifter.sapo.pt/2019/01/eliete-dulce-maria-cardoso/
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