Quem é afinal o Criador?
Reza Aslan nasceu em Teerão, mas cresceu nos Estados Unidos da América. Estudou Religiões Comparadas, Teologia e Escrita Criativa. Foi professor na área de Estudos Islâmicos. Em "Deus - uma biografia" (Quetzal), o seu mais recente livro, defende a existência de Deus como projecção do ser humano. Nós somos Deus.
Na adolescência, o autor de “O Zelota - a vida e o tempo de Jesus de Nazaré" deixou o Islão dos seus pais para entrar no cristianismo. A vontade de imaginar Deus como figura humana viu em Jesus Cristo uma satisfação. Jesus é a encarnação de Deus. Para imaginar o Pai bastava-lhe imaginar o mais perfeito dos filhos. Esta carência de O experienciar viria a encontrar sustentação nas ideias de Feuerbach. Em “A Essência do Cristianismo", o filósofo alemão afirma que o Deus pessoal, omnisciente e omnipotente é o resultado da vontade humana. Ele existe para o ser humano e por causa do ser humano. Quando este dorme, Deus dorme. Quando a consciência desaparece, também o demiurgo desaparece. O ser humano necessita de um deus que pense e aja como ele próprio para ultrapassar o fosso que separa criador da criação. Feuerbach pretendeu separar o homem da imagem divina e estabelecer nova relação com a natureza: uma existência primordial e independente da ideia de Deus. Aquilo que o homem precisa, isso é Deus, afirmou o filósofo alemão. Desiludido com o cristianismo, Reza Aslan regressaria ao Islão para concluir que nada mudava. Apesar de o Islão não reduzir Deus a uma imagem, não deixava de pensá-Lo em termos humanos. “Na verdade, toda a história da espiritualidade humana pode ser vista como uma longa tentativa, interligada, em permanente evolução e notavelmente coesa de perceber o sentido divino atribuindo-lhe as nossas emoções e personalidades, emprestando-lhe as nossas características e os nossos desejos, fornecendo-lhe as nossas forças e as nossas fraquezas, e até os nossos próprios corpos - em suma criando um Deus como nós", afirmou Aslan.
"Deus - uma biografia” (trad. Bruno Vieira Amaral) apela que se deixe de empurrar para cima a necessidade de identificação, seja assumida a visão panteísta do divino e não se esqueça quem foi criado: Deus. Com o intuito de chegar a essa conclusão, Aslan baseia-se em extensa bibliografia, onde consta um autor que o viria a influenciar decisivamente. Em "Faces in the Clouds: A New Theory of Religion” (Nova Iorque, Oxford University Press, 1995), o antropólogo Stewart Guthrie defende o antropomorfismo como origem de todas as religiões. O objectivo de Guthrie – e perfilhado por Aslan- é a criação de uma teoria que explique a origem da religião, ou do comportamento religioso. “O Feiticeiro” é o primeiro exemplo desse antropomorfismo. A mais antiga imagem de Deus foi descoberta por Henri Breuil na caverna de Les Trois-Fréres. “O Feiticeiro” é visto como divindade antiga, conhecida como “Senhor dos Animais Selvagens”, governante dos bosques. Os antigos suplicavam-lhe, através de orações, que os guiasse até às presas. As almas de todos os animais pertenciam-lhe. As grutas onde eram desenhadas estas figuras funcionavam como “membranas” sagradas entre o céu e o submundo. A imagem do “Senhor dos Animais Selvagens” tem versões desde a Eurásia até às Américas. Pode ser vista em cerâmicas da Mesopotâmia ou em facas de marfim no Egipto. Segundo Aslan, "até Iavé, o deus dos Hebreus, é por vezes representado na Bíblia como o Senhor dos Animais Selvagens (Job 39).” Essas representações são simbiose entre forças impessoais e características humanas. O reconhecimento que a força impessoal ("mana") envolvia mares, árvores, sol e lua necessitava de ser traduzido em veneração. Mas venerar algo incorpóreo apresenta muitas dificuldades. Foi preciso declinar essa força em cerâmicas, pedras, totens e talismãs. A partir desses objectos manufacturados o pedido de ajuda a entidades divinas simplificou-se. A combinação de elementos impessoais com categorias ontológicas como "humano" ou "animal" obedece ao impulso religioso que dá uma "crença suficientemente resistente para evoluir de uma origem no passado enquanto abstracção mental para o Feiticeiro de há 18 mil anos, para o livro de Génesis de há 2500 anos, até chegar aos neopagãos de hoje. E assim nasce um deus que sobrevive nas culturas da humanidade ao longo dos milénios". Freud viria a definir este impulso religioso como resultado da neurose nascida da necessidade do homem em tornar tolerável o seu desamparo. Aslan olha sempre para o ser humano e correspondente desamparo para escrever a biografia de Deus. A voz divina não é a voz presente do Antigo Testamento; a voz de Deus é a voz do homem que lê "O Livro" escrito por si. O cinismo reflete o posicionamento do autor, principalmente quando se refere ao Deus dos hebreus e à génese e evolução do cristianismo. Essa postura é mitigada quando o livro incide sobre o islamismo- sugerido como a mais recente etapa evolutiva do impulso religioso- e desaparece na defesa do assumido panteísmo.
A derrota dos judeus pela espada do Rei Nabucodonosor II, líder do Império Babilónico, iria transformar a visão judaica. A destruição da “Casa de Iavé" levantou problemas na conjugação de forças entre deuses. Iavé e as suas tropas mostraram-se mais fracas do que as babilónicas tropas do deus Marduque. A psique judaica teria de se adaptar ou abandonar Iavé. E assim o fez. Apesar de alguns judeus terem aprendido babilónico e passado a adorar Marduque, um pequeno grupo de religiosos criou uma visão alternativa: a destruição de Israel e o exílio faziam parte do plano divino desde o início. Forjara-se nova forma de relacionamento com Deus. A monolatria (adoração de um deus entre todos os outros) dominava um mundo religioso onde o monoteísmo (adoração de Deus e rejeição de todos os outros) ainda era residual. Para Reza, “a introdução do monoteísmo entre os judeus foi uma forma de racionalizar a derrota catastrófica de Israel às mãos dos babilónicos" Aslan discorre sobre as diferenças entre as fontes javistas e eloistas do Pentateuco tentando mostrar que a existência de dois nomes para Deus (El ou Elohim e Iavé) significa que haveria dois deuses na época de Moisés. A fonte sacerdotal [Fonte P] viria a alternar entre designações de Iavé e Elohim numa tentativa de fundir os dois deuses num só. O monoteísmo implementa-se à terceira versão. Depois das tentativas de Aquenáton e de Zaratustra, o monoteísmo entrou na psique humana com a paulatina fusão de El, deus de Abraão, com Iavé, deus de Moisés. Séculos mais tarde, a psique judaica viria a ser posta em causa por “uma seita arrivista de judeus apocalípticos que se autodenominavam cristãos". Entre eles, Jesus. A divinização deste homem teve efeito disruptivo. Até ao seu aparecimento, os outros homens-deuses do Próximo Oriente eram considerados várias manifestações de determinado deus entre vários deuses. Jesus era diferente. Ele era visto como a única expressão humana do único Deus do universo. Este camponês dos montes da Galileia punha em causa a definição judaica de um Deus único e indivisível surgida no exílio babilónico. Os gnósticos e a Igreja em Alexandria punham a ênfase na divindade de Jesus, a Igreja em Antioquia enfatizava a natureza humana de Jesus, os Ebionitas consideravam Jesus como profeta e milagreiro que comunicava com o divino, não sendo em si divino. Tudo isto foi resolvido no Concílio de Niceia, onde viria a surgir o conceito da Santíssima Trindade. As dúvidas que ainda restavam depois do Concílio seriam resolvidas em “De Trinitate”. Agostinho de Hipona afirmou que Deus existia em três formas: Pai, Filho e Espírito Santo. Nenhuma subjuga as outras, todas partilham a mesma medida de divindade. Um novo culto monoteísta, surgido no deserto da Arábia, viria a enfrentar a concepção de Deus humanizado do cristianismo. Os seguidores de Maomé, o profeta do deserto, enfrentaram a possibilidade de Deus Trino (cristão) e a de Deus Dual (zoroastra) de forma a erradicá-las em detrimento da “visão judaica de Deus a que o seu profeta, Maomé, tinha aderido incondicionalmente: a do Deus Uno.” Ao contrário de centenas de deuses reconhecidos pelos árabes e ao contrário do impulso religioso ao longo dos milénios, Alá não era representado por ídolos. Maomé reformulou a relação entre Iavé e Alá ao afirmar que foi Alá a estabelecer o pacto com Abraão (Surá 2:124-133), foi Alá que apareceu a Moisés (Surá 28), foi Alá que destruiu o mundo com um dilúvio (Surá 71), foi Alá quem enviou a Maria um anjo com a boa-nova de que daria à luz o Messias (Surá 3:45-51) e foi Alá que revelou a Tora e os Evangelhos (Surá 5:44-46). “Para que não restem dúvidas”, afirma Aslan, “Maomé não estava a pôr Alá no lugar de Iavé. Ele simplesmente entendia que Iavé e Alá eram o mesmo Deus.” Alá não se assemelha a nada que tenha sido criado e também nada do que foi criado se assemelha a Alá. Jesus seria, desta forma, não mais do que profeta. Reza Aslan conclui que, chegando ao islamismo, estamos no “ponto culminante da experiência do monoteísmo, o clímax da crença relativamente recente num Deus criador único, individual e não humano tal como o definiu o judaísmo do pós-exílio, tal como rejeitado pelo dualismo zoroastrista e a Trindade cristã, e tal como recuperado pela interpretação sofista do tawhid. Deus não é o criador de todas as coisas. Deus é todas as coisas". Aslan tenta capturar uma sombra. Não é censurável não ter conseguido delinear a escopro e martelo a figura do demiurgo. A conjugação de várias disciplinas, como a antropologia, psicologia, sociologia, teologia e psicanálise permite tanto quanto possível um panótico da projecção da imagem de Deus pelo homem. Só que Reza Aslan quis alimentar a polémica, exacerbando ainda mais a imagem de autor capaz de discutir na televisão e nas redes sociais. E tenta-o através de uma selecção de ideias que encaminha o leitor para conclusões pré-estabelecidas. Há vários casos meritórios na procura de conhecer Deus. Lembremo-nos de “Uma História de Deus" (Temas e Debates), de Karen Armstrong, ou das considerações de Stephen Hawking que viriam a provocar muita polémica por negarem a existência de Deus. O proeminente cientista partilha, em "Breves Respostas às Grandes Perguntas" (Planeta), a mencionada ideia de Feuerbach, que consiste num deus como natureza divinizada. Para Hawking, Deus tem sentido impessoal (tal como para Einstein) e que referir-se a Deus é referir-se "às leis da natureza, pelo que conhecer a mente de Deus é conhecer as leis da natureza”. Neste mesmo livro, o astrofísico defende a ideia de as leis da Natureza estarem na génese do universo, em detrimento de Deus. O universo foi criado a partir do nada, de acordo com a conjugação de três ingredientes essenciais: Matéria, Energia, Espaço. É tudo o que nos rodeia e nos forma (a “Mana”, mencionada por Reza Aslan). Estes ingredientes tiveram origem no Big Bang. Por trás do Big Bang está a energia negativa, ou seja, tudo tem o seu contravalor. “Então, o que significa isto na missão para descobrir se existe, ou não um Deus? Significa que, se a soma do universo é nada, não é necessário um deus para o criar." Hawking desenhou o rosto de Deus, quando analisou a informação recebida pelo telescópio espacial Hubble, formulou teoremas com Roger Penrose, estudou e aplicou a Teoria da Relatividade Geral de Einstein combinada com o Princípio da Incerteza de Heisenberg. Reza Aslan tentou desenhar Deus através de uma viagem cronológica, desde os mais primitivos impulsos religiosos até ao Islão, e recorrendo a diversas ciências sociais. Hawking alimentou o debate; Aslan quis doutrinar e sentenciar a discussão. No último capítulo, o autor afirma: “Na verdade, a história da espiritualidade humana que esbocei neste livro é muito semelhante à minha viagem pessoal pela fé (…)”. É quando analisa o todo através da experiência pessoal que Reza Aslan sabota uma maior relevância do seu trabalho. A visão pessoal é mal conjugada com uma visão mais abrangente. "Deus - uma biografia" foi pensado mais como argumentação definitiva sobre o assunto do que contributo para o debate. É pena. Poderia ser muito relevante para a teorização e especulação sobre Deus, mas boicota-se com o tom sentencioso.
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