Liberdade individual cerceada pelas bombas, cultura tribal e boatos. Eis “Milkman” (Porto Editora), prosa em toada hipnotizante escrita por Anna Burns (Belfast, 1962), vencedora do Man Booker Prize com este romance.
Anna Burns nunca nomeia territórios, acontecimentos históricos e muito menos partidos políticos. Nomear seria dotar de liberdade, de individualidade, e diminuir o universalismo da mensagem. Mas as suas palavras têm sombra; elas arrastam a história dos beligerantes acontecimentos nas Irlandas. Burns não nomeia, não assume, mas os ecos são constantes.
De um lado os protestantes britânicos defendiam a permanência como parte do Reino Unido; do outro, a facção católica queria a reunificação com a República da Irlanda.
O embate foi sangrento: Atentados como os acontecidos entre 72 e 98, em Guildford, Woolwich, Birmingham, executados pelo IRA; ou a morte de Louis Mountbatten, primo da rainha Elisabeth II; ou ainda o atentado de 1979, em que morrem 18 soldados britânicos. Antes disso, a manifestação de 30 de Janeiro de 1972, em Londonderry, conhecida como “Bloody Sunday”. Morreram 14 manifestantes católicos, com tiros provenientes de soldados ingleses. Um dos atentados mais graves aconteceria em 10 de Abril de 1998. Um grupo dissidente do IRA, chamado IRA Autêntico, fez explodir uma bomba vitimando 29 pessoas.
Trinta anos de conflitualidade entre protestantes-unionistas e católicos-republicanos modelaram a vivência social tão bem retratada por Anna Burns, em “Milkman”. Foram três décadas em que morreram entre três e quatro mil pessoas. No dia 10 de Abril de 2008 foi assinado o acordo de Sexta-Feira Santa que terminou com “The Troubles”, nome pelo qual ficou conhecido o conflito.
As gerações posteriores viriam a assimilar costumes e ideias alimentadas por estes acontecimentos. Mesmo sem terem assistido, filhos e netos foram educados de acordo com o ambiente vivido.
Quanto à atmosfera psicopolítica, com todas as suas regras de lealdade, de identificação tribal. Do que era ou não permitido, a coisa não se ficava pelos «nomes deles» e pelos «nossos nomes», pelo «nós» e «eles», pela «nossa comunidade» e a «comunidade deles, pela «ponta de lá da estrada» e pelo «outro lado do canal» e pelo «para lá da fronteira».
O medo e a aculturação da geração de uma menina de 18 anos, nossa narradora, são formados pelo sangue, pelo discurso de ódio, pelas explosões.
O que nos diz Anna Burns? Que depois de tudo, há esperança. Mesmo que reduzida, mesmo que imperceptível sob o sexismo dominante, violência religiosa e política, ou ostracismo social, há sempre uma saída. É isso que nos dá conta a voz desta “Irmão do Meio”, que nada quer ter a ver com questões políticas, não gosta do século XX, e prefere andar pelas ruas a ler romances do século XIX. É a assimilação da mensagem passada pela professora de francês. Todos os dias há pores-do-sol, há sempre um novo capítulo. As ideias do passado devem ser abandonadas e estar-se receptivo a novas interpretações. “Nunca se sabe quando virá o momento de charneira, a reviravolta, o instante em que tudo mudará e o significado de tudo isto se revelará.” concluiu a professora de francês. Mas até isso suceder o caminho é árduo e pedregoso. O ambiente social limita a individualidade, as vontades. Além disso, há algo que vai coarctar ainda mais o espaço da narradora. É a própria sociedade que a limita, mesmo ela não tendo visto nascer o conflito, mesmo ela não tendo sido agente activa no persistente boato, como todos pensam. Além de toda a vigilância e espionagem – “A máquina fotográfica escondida disparou, um disparo que soou a forças de segurança governamentais, tal como um outro arbusto posicionado algures naquela mesma represa fizera uma semana antes.”– a “Irmã do Meio” é sujeita ao assédio de um homem com cerca de 40 anos a quem chamam de Leiteiro. Não o verdadeiro, que acaba por sofrer na pele os atritos sociais, mas um homem que, por vias do deflagrado boato, se vê nomeado como tal.
Anna Burns não dá tréguas e reduz as personagens a questões físicas, familiares ou psicológicas. Além de todas as questões já mencionadas, a “Irmã do Meio” é ostracizada devido aos boatos que a envolvem com o misterioso Leiteiro.
“Por causa do leiteiro, eu ganhara o hábito de, ao chegar a casa ao fim do dia, ver debaixo da cama, atrás da porta, no roupeiro e por aí fora, porque ele podia estar ali dentro, debaixo de alguma coisa ou escondido atrás de alguma coisa; e também verificava as cortinas, confirmava que estavam bem fechadas e que ele não estava escondido fosse do lado de dentro da janela, fosse do lado de fora. E então percebi que as coisas tinham chegado a um ponto em que, ao fazer aquelas verificações, eu agora achava que a própria comunidade poderia andas a esconder-se no meu quarto.”
O boato destrói, insidioso, as relações da narradora. De um mal-estar geral, vai apodrecendo as relações mais próximas. O “Namorado Mais ou Menos”, a melhor amiga e a família vão se afastando da assediada. Eles ampliam o poder do leiteiro. É o #Metoo em tempos bombistas.
Percebe-se a atribuição do “Man Booker Prize 2018” a “Milkman”. A voz de Anna Burns tem uma toada diferenciadora, viciante, até quase hipnótica. A tensão é constante; o leitor não sabe quem é o leiteiro, não sabe o que vai acontecer à “Irmã do Meio” e muito menos sabe sobre o fim das hostilidades militares nesta cidade não nomeada. Mas sabe que Anna Burns consegue construir uma personagem marcante num ambiente opressivo e sempre verosímil.
Publicado em https://www.comunidadeculturaearte.com/milkman-de-anna-burns-metoo-em-tempos-bombistas/
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