Caminhar descalço sobre pedras de arestas vivas. Eis o caminho de Yerney, peregrino solitário com destino inalcançável. A interrogação de Yerney é a força motriz para Ivan Cankar escrever esta novela: “Trabalhei durante quarenta anos; construí uma casa; o meu suor adubou os campos e as pastagens. A quem pertence tudo isto?”
O esloveno Ivan Cankar (1892-1927) escreveu em “A Justiça de Yerney” (Cavalo de Ferro) a via sacra de um homem triste em busca de justiça. Cankar, um dos principais escritores eslovenos, foi ativista político com importantes ligações ao expressionismo católico e ao realismo socialista. Nasceu em Vrhnika e foi influenciado pelo naturalismo, realismo, decadentismo e simbolismo. É visto como o principal impulsionador do modernismo e do romance psicológico na Eslovénia. Características muito bem conjugadas neste livro, que viria a ser reverenciado por gerações posteriores. Yerney dedicou a sua vida ao trabalho e a Deus. Depois do seu patrão morrer, pensava que iria ter o merecido repouso. O corpo já velho e mastigado pelo labor continuo dava como certo um lugar à lareira sob o fumo do cachimbo. Mas tal não viria a acontecer. O filho de Sitar, seu falecido patrão, assumiu o lugar para revolta do operário. Começou a demanda por justiça. Na sua viagem entre Viena e Ljubljana, falará com padres, sábios e juízes; perguntará a camponeses e a “infiéis” onde mora a justiça; palmilhará caminhos agrestes para encontrar o que procura. Sempre sem sucesso. Todos o escarnecem e o desprezam. Segundo Yerney, quem toma conta de uma quinta não é pedinte nem vagabundo; quem semeia a terra e a aduba com o suor tem o direito de colher o produto, pois a labuta é de quem trabalha. Mas agora vinha o filho do patrão, assentando os seus direitos no sangue, colher o que ele havia trabalhado ao longo de décadas. O escritor consegue pôr em contraste o consolo celestial com a imperturbável frieza do ser humano. O personagem encontra nos céus o que a terra lhe nega. “Passou por muitos funcionários e juízes que o olhavam severamente; falaram-lhe asperamente; expulsaram-no; empurraram-no de porta em porta. Não protestou, não ameaçou, pois o seu coração era demasiado puro, a sua fé inabalável; não se revoltou quando o trataram como uma criatura tola ou uma criança. Por causa da justiça suportou o escárnio e o desprezo; não objectou, não se queixou quando lhe disseram que era um imbecil e parecido com uma criança. «Deus iluminá-los-á e perdoar-lhes-á, pensou Yerney” Cankar optou por uma estrutura muito simples, numa novela sucinta, onde a angústia do personagem é posta em evidência através da dialéctica. As ideias do indivíduo são contrariadas pelas ideias de uma maioria. Tanto na estrutura narrativa como na ideologia, a dialéctica põe em contraste os direitos detidos pelo capital com o proclamado e exigido direito de quem produz. Por muito que pesem as pernas a este sexagenário, a procura pela justiça empurra-o pelo caminho de pedras. E ele continua, como Cristo no calvário. É por demais evidente a presença de ideias adjacentes ao cristianismo na prosa de Cankar. O personagem não desiste e remete para Deus a derradeira justiça. Por mais que se sinta defraudado, por mais que o vilipendiem, agridam e escarneçam, Yerney mantém fé inabalável no aparecimento da luz que o irá alumiar. “Luta, apóstolo, luta!”, afirma para depois decidir não mais ser vítima. Como o Cristo, ele trouxe a discórdia. E Cristo acabou como mártir. Curto, incisivo e desafiador, “A Justiça de Yerney” tem tudo o que é preciso numa novela deste género. Seja o leitor de esquerda ou de direita, apologista do capital ou aguerrido combatente dos operários, este é um livro para ler sem contra-indicações.
Editor : Cavalo de Ferro
Data de lançamento :24/06/2019
EAN : 978-9898864697
ISBN : 9789898864697
Nº Páginas : 96
0 Comentários