O Projecto:
O projeto CELA (Connecting Emerging Literary Artists) abre o palco europeu a uma nova geração de criadores literários. Permite uma cooperação transnacional intensiva entre talentosos escritores, tradutores e profissionais literários europeus em início de carreira. No decurso do projeto, os participantes enfrentam algumas das mais exigentes realidades da nossa era — de fraturas cada vez mais acentuadas na Europa a um setor editorial em mudança — e põem-nas em perspetiva, partilham o seu trabalho e colmatam o fosso que os separa do setor editorial e do público europeu.
As organizações literárias de seis países europeus uniram forças para fundar o projeto de incubação de talentos cela — Connecting Emerging Literary Artists. Partilhamos a necessidade de estabelecer uma infraestrutura sustentável de incubação de talentos para preservar a diversidade da literatura europeia e dar maiores oportunidades a línguas minoritárias.
O projeto proporciona um percurso de dois anos com formação, instrumentos e uma rede que visam tornar possível uma carreira internacional e estabelecer uma prática profissional integrada. Com uma atenção em competências e mobilidade transnacional, incluímos especialmente as oportunidades digitais na literatura, novas formas de os participantes conseguirem emprego e rendimento.
Cada edição do projeto cela decorre durante dois anos. No primeiro ano, as organizações literárias orientam os escritores, tradutores e profissionais literários e proporcionam-lhes um programa multinacional de residências, formação e master classes para os preparar para trabalhar no mercado europeu e para um público internacional. No segundo ano, os participantes são inseridos por via de marketing internacional e campanhas publicitárias, uma digressão por festivais
europeus e apresentações ao público e a profissionais europeus por escritores e tradutores de renome (os nossos embaixadores cela) e organizações literárias.
As organizações literárias de seis países europeus uniram forças para fundar o projeto de incubação de talentos cela — Connecting Emerging Literary Artists. Partilhamos a necessidade de estabelecer uma infraestrutura sustentável de incubação de talentos para preservar a diversidade da literatura europeia e dar maiores oportunidades a línguas minoritárias.
O projeto proporciona um percurso de dois anos com formação, instrumentos e uma rede que visam tornar possível uma carreira internacional e estabelecer uma prática profissional integrada. Com uma atenção em competências e mobilidade transnacional, incluímos especialmente as oportunidades digitais na literatura, novas formas de os participantes conseguirem emprego e rendimento.
Cada edição do projeto cela decorre durante dois anos. No primeiro ano, as organizações literárias orientam os escritores, tradutores e profissionais literários e proporcionam-lhes um programa multinacional de residências, formação e master classes para os preparar para trabalhar no mercado europeu e para um público internacional. No segundo ano, os participantes são inseridos por via de marketing internacional e campanhas publicitárias, uma digressão por festivais
europeus e apresentações ao público e a profissionais europeus por escritores e tradutores de renome (os nossos embaixadores cela) e organizações literárias.
Os autores e tradutores participam em campanhas internacionais, festivais literários em diferentes países e numa rede de trabalho que proporcionará contacto entre todos os participantes.
Kick-Off: Hay Festival Segovia (Espanha), Tinto-no-Branco- Festival Literário de Viseu (Portugal), Book Fest (Roménia), Pisa Book Festival (Itália), Lev-Literatura em Viagem (Portugal), Passa Porta Festival (Belgium), Wintertuinfestival (Holanda) recebem os autores e tradutores do projecto CELA.
Kick-Off: Hay Festival Segovia (Espanha), Tinto-no-Branco- Festival Literário de Viseu (Portugal), Book Fest (Roménia), Pisa Book Festival (Itália), Lev-Literatura em Viagem (Portugal), Passa Porta Festival (Belgium), Wintertuinfestival (Holanda) recebem os autores e tradutores do projecto CELA.
Parceiros:
Booktailors
Escuela de Escritores
Flemish-Dutch House deBuren
Passa Porta
Pisa Book Festival
Wintertuin
Biografia
MARIANA TORRES
Ano de nascimento: 1981
Nascida no Brasil
Vive e trabalha em Madrid
– Autora de El cuerpo secreto (Páginas de Espuma, 2015) e da curtametragem Rascacielos (2009)
– Parte dos Bogotá39 2017, escolhidos pelo Festival Hay Festival de
Cartagena de Indias, que representa os 39 melhores ficcionistas com menos
de 40 anos nascidos na América Latina
– Ensina escrita criativa na Escuela de Escritores desde a sua fundação em
Madrid (2003)
– Membro da rede EACWP (Associação Europeia de Programas de Escrita
Criativa)
– Dois contos traduzidos para inglês por Lisa Dillman: revista LALT
(Latin American Literature Today), conto «Árvore Monstro Menino
Árvore», que integra o seu primeiro livro El cuerpo secreto; e «Roots», para
Bogotá 39: New Voices from Latin America (Oneworld Publications, Reino
Unido, 2018)
Sobre Mariana Torres
«Sou uma escritora obsessiva», começa por dizer Mariana Torres.
«Quando estou a escrever um livro, não tenho tempo para mais nada. A
escrita absorve todos os momentos dos meus dias. Enquanto estava a
escrever o meu primeiro livro, as outras áreas da minha vida ficaram
completamente destruídas. Esquecia-me de prazos. Uma vez deixei arder a
minha casa. A escrita torna-se uma obsessão», diz, soltando uma
gargalhada. «Isso é bom.»
Torres nasceu no Brasil, filha de pais argentinos. «Em criança, vivi
em muitos sítios diferentes. Durante um período de tempo, os meus pais
mudaram de casa frequentemente, às vezes até dentro da mesma cidade.
Vivíamos um ano numa casa e outro ano vivíamos noutra. E de cada vez
que nos mudávamos, eu levava os meus livros comigo. Quase não tinha
tempo para conhecer novas pessoas. Nessas alturas era bom poder ler.»
Em cima da mesa está a sua coletânea de contos. Torres olha para o
livro de forma enternecida. De vez em quando, folheia-o rapidamente, à
procura de um determinado exemplo. «Foi difícil escrever isto», diz,
pousando de novo a coletânea. A capa brilha por baixo dos seus dedos
finos. «Tive de recomeçar três ou quatro vezes, porque havia algo de
errado. Falta algo à escrita. Só na última tentativa é que consegui encontrar
um estilo, um som que me agradava. Depois, passou a ser uma voz a
escrever.»
Torres leva muito a sério essa voz narrativa. Fala sobre ela de forma
fogosa, mas ao mesmo tempo mantém uma certa circunspeção. Os cabelos
pretos que lhe pendem dos lados da cara fazem com que pareça estar
escondida. Todavia, a voz dela é calorosa e alegre. «Apercebi-me que a
minha escrita definha quando tento controlá-la. Na verdade, tenho de
perder completamente o controlo. Isso só acontece quando escrevo muito
rápido. Quero sobretudo não pensar», e por um momento ela fica em
silêncio. «Confio mais nos meus instintos do que nos meus pensamentos.
Sim», diz devagar, «não preciso do meu cérebro quando escrevo. Tem a
tendência para me corrigir, em vez me ajudar a criar.»
«Só me consigo aprofundar na leitura do meu próprio trabalho,
uma vez terminado. Só quando o volto a ler, é que pareço
compreender-me», diz, contendo o riso. Torres foi recentemente
convidada para uma conferência, onde tinha de se apresentar em dez
minutos. Não o seu trabalho, mas a si mesma. «Foi um pouco estranho»,
ela ri-se baixinho. «Considero o meu trabalho mais relevante do que eu.»
A atitude dela muda quando volta a falar das mudanças de casa.
Novamente, olha para baixo por uns instantes. Com isto, os seus cabelos
caem para a frente, tapando-lhe a cara de ambos os lados, como se uma
pequena cortina preta se fechasse. Ao todo, já mudou de casa 29 vezes. Isso
teve influência no seu trabalho? «I don’t mind change», diz. «Mudar não me incomoda. Isso reflete-se no meu trabalho, parece que a adaptabilidade
costuma desempenhar um papel naquilo que escrevo. As minhas
personagens são obrigadas a lidar com mudanças», conclui e de novo
esboça um sorriso: «Quando terminei o meu primeiro livro, o meu editor
comentou que havia nele um número surpreendente de caixas.»
Conto de Mariana Torres
Árvore Monstro Menino Árvore
Ainda não sabemos como Óscar comeu a semente, nem descobrimos de
onde a tirou. Temos ainda menos respostas para percebermos como pôde a
árvore crescer-lhe por dentro, germinar a semente sem qualquer
impedimento, disse o médico, na boca do seu estômago, regada somente
pelos sucos biliares do menino. É que aos sete anos, também nos disse o
médico, os estômagos funcionam muito bem. O corpo do nosso Óscar —
ainda era o nosso Óscar então — permitiu que a árvore crescesse, que as
raízes se estendessem pelos intestinos e que o tronco se fosse distendendo
esguio, cerimonioso, ao longo do esófago até à boca, os ramos procurando
a luz do Sol. O que realmente sabemos, ou queremos crer, é que a árvore
não pretendia fazer-lhe mal nenhum, que essa árvore monstro — como lhe
chamo a sós quando me olho ao espelho, ainda envergonhada pelo que
fizemos — o amava. De alguma forma, Óscar e a árvore monstro eram uma
só coisa, faziam parte um do outro. E assim os ramos que lhe cresceram
pela garganta nunca lhe atravessaram o peito e sim, com paciência, foram
arranjando espaço. Sempre sem incomodar. Sempre sem magoar. Embora,
de fora, parecesse o contrário.
Não era uma árvore comum, com folhas e madeira vulgares, a
madeira da árvore monstro era tão flexível como um músculo esquivo, de
uma cor que se assemelhava às vísceras. As folhas eram finíssimas e tão
verdes como costumam ser as folhas, mas só até metade, no pecíolo eram
irrigadas por capilares microscópicos que, quase sem se notar, coloriam a
metade inferior da folha com um tom avermelhado, como um entardecer.
Demorámos bastante a apercebermo-nos de tudo isto porque a
invasão da árvore monstro não parecia trazer a Óscar senão alegria.
Naqueles primeiros dias muitos de nós achámo-lo encantador e mais
saudável que nunca. O miúdo entediado e doentio que era transformou-se
num menino magnífico, cheio de energia. Não parava quieto. A sua face,
habitualmente pálida, estava mais do que rosada, os olhos brilhavam-lhe
como nunca. É certo que a pele, se a observávamos a certas horas do dia,
tinha um leve tom esverdeado, mas não nos quisemos preocupar com uma
ninharia desse género. Foi o primeiro dos nossos erros. Também não
quisemos obrigá-lo a tirar aquele gorro que usava encaixado na cabeça, do
qual não se separava nem para dormir e já tresandava um pouco a
humidade. Interpretámos aquilo tudo como as esquisitices habituais de
um menino vulgar.
Descobrimos a árvore no dia em que Óscar abriu a boca para gritar
connosco e, em vez de um grito, saiu-lhe uma flor. Era uma flor dourada e
húmida, ainda pequena e fechada, como se tivesse medo de se abrir. Assim
que Óscar se apercebeu de que a queríamos cortar, fechou a boca e
negou-se a dizer o que quer que fosse. Enquanto não escondemos a tesoura
da poda e não nos afastámos a uma distância prudente, não voltou a abrir a boca. Quando o fez, a flor voltou a sair, um pouco mais ousada desta vez, e
abriu-se só um pouco, assegurando-se de que ninguém a queria arrancar do
menino. Nesse mesmo dia, Óscar tirou o gorro que havia semanas usava
enfiado na cabeça para nos mostrar os ramos que já lhe saíam das orelhas,
flexíveis e jovens, com rebentos de folhas novas.
— Precisam de luz.
Foi tudo o que nos disse, a única explicação que nos deu. Sacudiu a
cabeça, feliz por poder agitar os seus ramos sem pudor. Nós estávamos tão
surpreendidos que até devemos ter deixado de respirar. Alguns de nós
vomitaram. Os demais puseram-se a chorar. Óscar foi-nos consolando a
todos, como se de repente os papéis se tivessem invertido e nós fôssemos as
crianças de quem era preciso cuidar. Sobretudo, fez-nos prometer que
nunca, independentemente do que acontecesse, o levaríamos ao médico.
Que nunca nenhum médico o examinaria.
***
Desde a descoberta da árvore, alguns dos nossos hábitos alteraram-se. Os
horários, por exemplo. As horas de luz eram tão necessárias para Óscar que
aprendemos a repartir os passeios ao exterior por todos para que o menino
estivesse sempre acompanhado por um adulto. Às vezes, um de nós
surpreendia Óscar a acariciar suavemente o estômago. Nunca se queixou
de nenhuma dor, e até hoje perguntamo-nos se por medo de uma possível
ida ao médico, ou porque era uma daquelas dores tão inerentes à vida que
chegam a deslumbrar e a suportar-se na mesma medida. Nos meses
seguintes a árvore cresceu muitíssimo, mais de um metro acima da sua
cabeça. O gorro, já perdido na parte mais alta da árvore, deve ter chegado a
albergar um ninho de pássaros. O menino, além do mais, tinha de se dobrar
para entrar no seu quarto. Apesar dos ramos e das folhas e tudo o que não
podíamos ver por causa da altura, aquilo não parecia pesar a Óscar. Nunca
entendemos essa simbiose. Era apenas como se o mundo, de repente,
tivesse ficado para ele mais pequeno.
À noite, entrávamos no seu quarto sem que nos visse para observá-lo
enquanto dormia. Chegámos a gostar de assistir àquele momento anterior
ao sono profundo, quando as flores fechadas lhe saíam da boca e se
acomodavam a ambos os lados da cabeça de Óscar, abraçando e
protegendo. Se o menino era vítima de um sonho mau e se movia agitado,
logo uma das flores acordava para lhe acariciar a face, acalmando-o.
Também éramos testemunhas de como, todas as noites, quando o menino
já estava total e profundamente adormecido, começava a chorar. Óscar
chorava sem alarde durante horas, sem ruído, sem ranho. Dos seus olhos
caíam rios de água salgada que encharcavam os lençóis e os ramos do pescoço e as folhas baixas. E, ainda que Óscar parecesse dormir tranquilo,
tínhamos a permanente sensação de que em cada uma dessas lágrimas lhe
escapava um pouco de vida. Mas o facto é que a cada manhã nada de mau
parecia ter acontecido, o menino pedia vários copos de água fresca, dava
um grande bocejo e depois esfregava os olhos e as folhas e todo o corpo,
sem o mais leve vestígio de lágrimas.
Nunca soube que o observávamos a dormir. Regressávamos aos
nossos quartos ao amanhecer, tínhamos a certeza de que não teria gostado
de saber que fazíamos aquilo.
A doença chegou de repente. Não sabemos se foi o frio, ou a janela
aberta, ou a falta de gorro, ou a mudança de estação. Ou era a árvore
monstro que, nessa altura, sem poder crescer muito mais, sem espaço por
dentro para alargar as suas raízes, começou a adoecer. As folhas foram
caindo aos pares, a rega habitual que as alimentava deixou de ser suficiente
e desprendiam-se, acastanhadas, como folhas de outono. Os ramos
pareciam encolher. E a cada passo de Óscar iam-se perdendo mais folhas,
caíam sozinhas, com o seu próprio peso. Nós às vezes varríamo-las sem que
o menino se apercebesse. Mas sabia-o, claro que se apercebia. Por muito
que lhe explicássemos que em determinadas épocas do ano há árvores que
perdem as folhas, ele intuía que a sua árvore não era dessas, e que perder as
folhas não era bom.
Não podia fazer mais do que sentar-se ao sol, ficar tão quieto quanto
lhe fosse possível, e estender os ramos e os braços firmes para apanhar os
raios de um Sol que, lá em cima, pairava cada vez mais apagado ou coberto
de nuvens. As flores, e essa era a nossa esperança, não caíram. Permaneciam
hesitantes e grandes, eram um total de quatro as que lhe saíam,
encantadoras, pela boca, e se acomodavam atrás da cabeça, como uma
coroa dourada. Quando Óscar apanhava sol, imóvel, e os raios oblíquos lhe
iluminavam a cara e as flores, parecia o rei das árvores, um rei com uma
coroa de flores douradas. Era algo único de se ver.
Mas o sol ia perdendo fôlego à medida que avançava o outono, cada
vez se repetiam mais amiúde os dias enevoados. Óscar tinha, então, de
passar cada vez mais horas no exterior, quieto com os ramos estendidos,
para aproveitar cada lâmina de luz. Também cada noite dormia mais e
chorava rios abundantes de água salgada. Tínhamos, naquela época do
ano, todos os dias cada vez menos horas de luz.
***
Quando chegou o inverno decidimos chamar o médico. Disfarçámo-lo o
suficiente para que o menino nunca soubesse quem era. Apresentámo-lo
como alguém que tinha tido também uma árvore dentro de si e o menino acreditou piamente na história. A verdade é que o médico o fez muito bem,
inventou uma personagem muito coerente, aproveitando aquela cara de
feto que tinha, aquela barba que parecia musgo, e com ajuda de umas ervas
que utilizou para pintar a língua de verde. Calculámos que Óscar já estava
cansado, passara muitos dias assim, com os ramos e os braços estendidos
para captar o pouco sol que havia no exterior. Tínhamos a certeza de que
desejava voltar a ser como os outros meninos, que não podia com a carga de
uma árvore já tão grande, estando tão doente. Ou talvez tenha sido um erro
querer convertê-lo num dos nossos. Como poderíamos sabê-lo.
Mesmo assim fizemo-lo. Éramos nós os adultos. O médico falsa
árvore explicou-lhe como extrair a planta sem que nenhum dos dois
sofresse. Baseou-se na sua experiência, com muitos detalhes contou-nos
como ele o tinha conseguido, inclusivamente mostrou ao menino
fotografias da sua suposta árvore, crescendo agora feliz nas margens de um
rio, tão alta e frondosa como qualquer outra. O médico contou a Óscar
que a sua árvore, com os anos, chegou a dar frutos e que agora alimentava
uma família inteira. O menino escutava com todo o empenho de que era
capaz, já não lhe restavam forças nem para falar, mas brilhavam-lhe
imensamente os olhos enquanto acariciava os ramos e os braços e as flores
douradas.
Então, nessa mesma noite, antes de dormir, Óscar deixou-nos
podá-lo. Com toda a delicadeza de que fomos capazes cortámos-lhe os
ramos, com um enorme cuidado para não quebrar os rebentos dos ramos
altos, uns lindos rebentos que podiam conservar-se em água para, talvez,
gerar novas folhas. Podámo-lo devagar, entre todos. Óscar não deixava de
tremer. Dois de nós segurávamos-lhe as mãos e outros dois secavam-lhe as
lágrimas que caíam ao chão em grandes pingos do nariz. O menino ficou
branco quando, para terminar, lhe cortámos as flores da boca e lhas
pusemos nas mãos. Tomou-as com respeito e depositou-as em água junto
aos ramos. As flores permaneciam, ainda, eretas e belas, tão douradas como
sempre.
Abraçámo-lo entre todos, finalmente sem nos espetarmos nos
ramos, que alegria, subimo-lo a um palmo do chão, depois a dois,
conseguimos inclusivamente levantá-lo entre todos. Óscar tentava rir
como nós, mas da boca saía-lhe algo mais parecido com um som gutural,
uma espécie de arroto de madeira. Era tão agradável poder abraçar Óscar
sem nos picarmos num ramo, que não pensávamos noutra coisa. Como
tínhamos sentido a sua falta. Tomou sem resistir a bebida que lhe tinha
preparado o médico falsa árvore para expulsar, o quanto antes e o mais
inteiras possível, as raízes dos seus intestinos.
Fomos todos dormir. No dia seguinte, iríamos plantar com cuidado
os restos da árvore, tal como nos tinha explicado o médico que devíamos fazer. Nessa noite, o menino fechou a porta do seu quarto e, pela primeira
vez, não pudemos espiá-lo a dormir. Passámos a noite, em contrapartida, a
vigiar os ramos da árvore na água até adormecermos. Estávamos tranquilos.
Cansados.
Dormimos tanto que nos surpreendeu o meio-dia. Mas quase
sucumbimos de amargura ao abrir os olhos e apercebermo-nos como as
flores da árvore na água, horas antes douradas, bonitas e húmidas, estavam
agora caídas, deprimidas, murchas. Os ramos tinham perdido toda a
flexibilidade do dia anterior, e agora, separados de Óscar, não eram mais do
que madeira dura e cheia de lascas. Corremos para o quarto do menino,
tivemos cuidado para não deitarmos todos a porta abaixo. Óscar estava
deitado na cama, em posição fetal, parecia dormir tranquilo. Não lhe
tinham crescido mais ramos nem flores. Demos as mãos com emoção
contida e aproximámo-nos devagar. Acariciámos-lhe suavemente as faces,
os braços, as pernas, o peito. Até a pele tinha recuperado a cor pálida de
antigamente, antes da semente. Óscar respirava tranquilo, alheio à nossa
alegria. Foi acordando pouco a pouco, não o forçámos, esperámos,
apreciando cada um dos seus movimentos de menino.
Mas deve-nos ter gelado o sorriso na cara quando Óscar abriu os
olhos. Isso mudou tudo. Os seus olhos, aparentemente os de sempre, com
a mesma cor e a mesma forma, estavam irreconhecíveis. Estavam apagados,
sem qualquer brilho, opacos. Tão vazios que nos provocava uma náusea
desgastante olhá-lo diretamente. Ao tomar contacto com aqueles olhos
invadiu-nos uma tristeza profunda, uma tristeza tão grande, tão
contagiosa, que só quisemos morrer. Como se a tristeza de Óscar estivesse
no ar e nos impregnasse a pele e as vísceras. De repente só tínhamos
vontade de nos enterrarmos uns aos outros, de nos escondermos, taparmos
e cobrirmos com muita terra por cima, de nos esmagarmos completamente
no fundo, na escuridão. De criar raízes e de nos deixarmos comer pelos
vermes. Foi disso que tivemos vontade a partir de então.
Tradutor
MATIAS GOMES
Ano de nascimento 1972
Nascido Portugal
Vive e trabalha em Lisboa
– Tradutor de espanhol > português, inglês/francês > português e
português > inglês
– Professor de Português (ensino secundário)
– Mestrado em Literatura Medieval Portuguesa (publicação de várias
comunicações feitas em Congressos da Associação Hispânica de Literatura
Medieval — AHLM)
– Dinamizador da comunidade de leitura «Conversas Para Lê-las» (só
literatura de mulheres escritoras) durante cinco anos
– Organizador e dinamizador de workshops «Drag King» (p. ex., «Here
Comes Your Man»), enquanto ativista de género.
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