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Simone Atangana Bekono:CELA| Connecting Emerging Literary Artists






 CELAConnecting Emerging Literary Artists




O Projecto:

O projeto CELA (Connecting Emerging Literary Artists) abre o palco europeu a uma nova geração de criadores literários. Permite uma cooperação transnacional intensiva entre talentosos escritores, tradutores e profissionais literários europeus em início de carreira. No decurso do projeto, os participantes enfrentam algumas das mais exigentes realidades da nossa era — de fraturas cada vez mais acentuadas na Europa a um setor editorial em mudança — e põem-nas em perspetiva, partilham o seu trabalho e colmatam o fosso que os separa do setor editorial e do público europeu.
As organizações literárias de seis países europeus uniram forças para fundar o projeto de incubação de talentos cela — Connecting Emerging Literary Artists. Partilhamos a necessidade de estabelecer uma infraestrutura sustentável de incubação de talentos para preservar a diversidade da literatura europeia e dar maiores oportunidades a línguas minoritárias. 
O projeto proporciona um percurso de dois anos com formação, instrumentos e uma rede que visam tornar possível uma carreira internacional e estabelecer uma prática profissional integrada. Com uma atenção em competências e mobilidade transnacional, incluímos especialmente as oportunidades digitais na literatura, novas formas de os participantes conseguirem emprego e rendimento.
Cada edição do projeto cela decorre durante dois anos. No primeiro ano, as organizações literárias orientam os escritores, tradutores e profissionais literários e proporcionam-lhes um programa multinacional de residências, formação e master classes para os preparar para trabalhar no mercado europeu e para um público internacional. No segundo ano, os participantes são inseridos por via de marketing internacional e campanhas publicitárias, uma digressão por festivais
europeus e apresentações ao público e a profissionais europeus por escritores e tradutores de renome (os nossos embaixadores cela) e organizações literárias. 

Os autores e tradutores participam em campanhas internacionais, festivais literários em diferentes países e numa rede de trabalho que proporcionará contacto entre todos os participantes.
Kick-Off: Hay Festival Segovia (Espanha)Tinto-no-Branco- Festival Literário de Viseu (Portugal), Book Fest (Roménia), Pisa Book Festival (Itália), Lev-Literatura em Viagem (Portugal), Passa Porta Festival (Belgium), Wintertuinfestival (Holanda) recebem os autores e tradutores do projecto CELA.


Parceiros:
Booktailors
Escuela de Escritores
Flemish-Dutch House deBuren
Passa Porta
Pisa Book Festival
Wintertuin




Biografia

Simone Atangana Bekono


Ano de nascimento 1991
Nascida Holanda
Vive e trabalha em Roterdão
– Licenciatura em Escrita Criativa na ArtEZ University of the Arts (2016)
– Poesia: hoe de eerste vonken zichtbaar waren (Wintertuin, 2017)
– Slow Writing Lab, incubadora de talentos da Fundação Holandesa para a Literatura (2016–2017)
– Residência em Paris com a Flemish Dutch House deBuren (2018)
– Vencedora do prémio de poesia "Poëziedebuutprijs aan Zee", concedido
pelo centro belga de poesia "Poëziecentrum" (2018)




Sobre Simone Atangana Bekono

Simone Atangana Bekono poderia nunca ter chegado a ser escritora. Enquanto estudante, seguiu um interesse muito diferente. «Não sou uma escritora que aos doze já sabia que queria escrever. Na escola, perdi verdadeiramente toda a vontade que tinha em ler. Já só queria ver filmes.»
 Ela solta uma gargalhada e em seguida prossegue, franzindo a testa como quem imita um tom sério: «A sério, enquanto fui aluna vi uma quantidade absurda de filmes.» Atangana Bekono escolheu, por esse motivo, seguir a licenciatura em Media e Cultura. Muitos dos colegas dela escolheram esse percurso porque queriam fazer filmes, mas: «Já sabia, ainda antes de entrar, que não queria ser atriz, também não fui feita para ser realizadora. Achava as conversas sobre cinema interessantes, mas estavam sempre relacionadas com estudos de imagens. As discussões eram sempre académicas, não tinha nada a ver comigo.» Atangana Bekono fez por isso a transição para o curso de Escrita Criativa. Quando chegou o primeiro dia, não precisou de mais motivos para ficar convencida. «Percebi imediatamente: esta é a minha língua, aqui analisam-se histórias de uma forma com a qual me identifico. Havia outras perspectivas», explica. «No entanto, continuo a pensar que o meu interesse em cinema tem influência no meu trabalho. Determina a forma como olho para as histórias. Não consigo, por exemplo, trabalhar com diálogos. Escrevo mais a partir de ações, imagens e associações.»
 Durante os seus estudos, Atangana Bekono desenvolveu uma forte consciência sobre o seu próprio ofício. Ela leva a chávena de café à boca. «Aprendes a encontrar o teu método de trabalho. Um curso de escrita obriga-te a dar passos que podem talvez não parecer fazer sentido.
 Obrigam-te a experimentar. Daí nasce também a noção de que é preciso refletir a partir de uma obra. O que é que uma obra precisa de ter? Que forma? E será que a obra pede uma abordagem específica?»
 Foi uma conclusão que muito trouxe a Atangana Bekono: «Tornei-me mais consciente de mim mesma». É então que a conversa desemboca na ascendência de Atangana Bekono:
 o pai dela vem dos Camarões. O tema surge quase acidentalmente, o que surpreende até a própria escritora. Ela sorri e continua de olhos bem abertos: «Isso é, sem exceção, a primeira coisa que as pessoas perguntam, as minhas origens também são sempre mencionadas quando escrevem sobre mim, acerca do meu pai camaronês, o meu ar estrangeiro.
 Uma conversa como esta? Sobre a influência de filmes no meu trabalho? São raras», e Atangana Bekono começa a falar mais devagar, ela mede cuidadosamente as palavras. «Sim, também falo muito sobre a minha posição, os meus pontos de vista ou a minha voz, mas sempre em diálogo com a minha identidade. Sou uma mulher jovem e negra. Isso são características que me influenciam enquanto autora, mas essa influência não é maior do que para um homem idoso e branco.» Ela volta a franzir a testa: «A tua identidade não precisa de influenciar o teu estatuto enquanto autor, podes até escolher ignorá-la completamente. Mas porque sou mulher, jovem e negra, não tenho essa possibilidade.»
 Ela pousa o café. «O meu interesse em cinema é muito mais determinante para o meu trabalho», diz enquanto passa a colher pela espuma. «Aquilo que escrevo move-se entre a poesia e o guionismo. Vejo a poesia primeiramente como um conjunto de imagens, só depois como uma construção linguística. É por isso que escrever é muitas vezes um processo de montagem, como se estivesses a escolher a melhor passagem entre as imagens de um filme.» Atangana Bekono bate levemente com a palma da mão na mesa. Diz uma asneira e volta-se a rir: «Agora fiquei com vontade de ir ao cinema.» 

Vídeo



Conto de Simone Atangana Bekono

Prince Julian 

Durante o pouco tempo que passou na Escola Superior de Arnhem e Nijmegen, onde tinha tentado, para espanto dos pais, seguir o curso de assistência social, Fleur vivia na rua Molenbeek por trás da estação ferroviária de Arnhem Velperpoort. No quarto, onde o sol apenas entrava de manhãzinha, ela dormia mal. Isto por causa dos vizinhos de cima que passavam o tempo a insultarem-se um ao outro, a ter sexo barulhento e a snifar linhas de coca antes de irem para os seus empregos no solário e no ginásio. Lá estava ela, deitada numa toalha ao sol, no primeiro verão da sua estadia. Ela sabia que passar tempo ao sol lhe fazia bem às articulações e ao espírito. Nos primeiros anos da puberdade, Fleur tinha tido enormes depressões sazonais de outubro a março. Quando tinha catorze anos, sentara-se uma vez no parapeito da janela do quarto com as pernas viradas para fora, dando em doida por causa do silêncio vazio e desgastante na sua cabeça. Tinha estado a fumar cigarros ao frio até que o pai os conseguisse cheirar da sala de estar e fosse a correr para cima para lhe dar nas orelhas. Ao abrir a porta com toda a força, assustou-a de tal forma que ela pulou da janela e foi parar à roseira lá em baixo, ainda que nunca tivesse realmente tido a intenção de saltar. 
Fleur estava portanto deitada naquela toalha ao sol no pequeno terraço da sua casa, quando ouviu um reboliço e uma voz vinda da janela do quarto de um dos apartamentos adjacentes com vista para o seu terraço. Levantou os olhos para a imagem do rapaz vizinho, para o cabelo longo, preto, ele penteando-o.

No Facebook o rapaz chamava-se Prince Julian e posava com bonés da tropa, grandes colares de diamantes falsos e camisas de alças apertadas, lip gloss nos lábios e umas sobrancelhas perfeitas. Na biografia dizia que era de origem iraniana. Fleur não conhecia propriamente o Prince Julian, mas ele passava sempre por ela de bicicleta quando ela vinha da escola com aqueles caracóis brilhantes, o seu traseiro maravilhoso rangendo no selim da bicicleta, e por vezes até sorriam um para o outro. Tinha surgido uma estranha e minúscula amizade que não passava de dizerem adeus da janela do quarto ou do terraço, cumprimentarem-se quando iam para a paragem de autocarro e de vez em quando uma conversa bêbeda a caminho de casa, o Prince Julian de braço dado com o namorado, a Fleur com as mãos metidas nos bolsos do casaco. 

Seja como for, ela estava portanto deitada no terraço a ouvir a voz do Prince Julian. Ele estava a cantar quando de repente parou, meteu a cabeça fora da janela e gritou: — Ei!

Fleur acenou de volta, sentou-se direita, deslizou os óculos de sol para dentro do cabelo.
 — Ei — disse ela. 
— Sobe, está demasiado calor. Estou a beber chá. 
— OK — disse Fleur. Limpou o suor do lábio superior e levantou-se, entrou na cozinha para se vestir.

 O Prince Julian deixou-a entrar, usando uma camisa de alças preta e umas calças de jogging apertadas. Já tinha feito chá. No corredor, onde Fleur tinha tirado os chinelos e ficado a olhar para as fotos do Prince Julian e o seu namorado, do Prince Julian e uma rapariga loira e apenas do Prince Julian, ouvia um locutor a falar na televisão com um barulho de fundo que parecia de tambores. O Prince Julian caminhou à sua frente. Ela pôde sentar-se no sofá preto de pele na sala de estar e podia pôr a música mais baixo, senão não conseguiam falar. A televisão, que estava muito mais alta do que a canção que produzia o barulho dos tambores, teve de ficar ligada.
 Um locutor da BBC entrevistava uma repórter sobre o brexit. Quando o Prince Julian se foi sentar no outro sofá preto de pele à beira da janela, apontou zangado para o ecrã com uma das duas canecas de chá quente, entornando chá preto no laminado.
 — O problema deste continente da piça é que todos vivemos nele, mas ’tá-se toda a gente a cagar para a Europa — disse ele, voltando a sair para a cozinha e regressando pouco depois com um prato cor-de-rosa com bolachinhas de amêndoa. Fleur tirou logo uma e meteu-a na boca enquanto observava a sala de estar do Prince Julian.
 O interior era bastante impressionante. Muitos diamantes falsos, mas também incríveis tapetes persas pendurados na parede. Uma combinação de móveis em madeira escura, candelabros de cristais falsos, pormenores dourados. Lembrava-lhe uma clássica casa de chá turca, mas quitada pela Paris Hilton. Até lhe achava piada.
 — O que acontece se lhe cai uma bomba em cima? Ou se nos chateamos mesmo a sério com a Rússia? Ou se todos aqueles refugiados já não conseguirem entrar na Inglaterra e começarem a saltar de prédios em massa? — O Prince Julian tinha uma voz estridente e instável e que, independentemente do seu verdadeiro estado emocional, fazia parecer muitas vezes que poderia a qualquer momento desatar a chorar.
 Fleur abriu a boca. A bolachinha de amêndoa estava pousada às migalhas em cima da sua língua, mas o Prince Julian olhou para ela tão intensamente que ela se sentiu na obrigação de abandonar todas as regras de etiqueta e responder-lhe o mais rápido possível.
— Então estamos todos perdidos — disse ela, esperando imitar o tom dramático do Prince Julian, borrifando migalhas de bolacha em cima da mesa toda e nas duas canecas.
 — Não, man! — berrou o Prince Julian, estupefacto. Levantou-se do sofá, tirou uma moldura do armário que estava entre os dois sofás e meteu-a em frente à cara de Fleur. Na foto estava uma criança com cerca de oito anos com três homens mais velhos, cada um dos três com um bigode robusto e um charuto na mão. Encontravam-se numa sala de estar e usavam vestes brancas. A criança segurava um envelope. O Prince Julian batia de forma irritada com uma unha pintada de roxo no vidro da moldura.
 — Voltamos mas é todos para donde viemos. Levamos connosco o conhecimento, as contas bancárias. Que se fodam estes cabrões, nós estamos habituados às cenas de topo, de onde achas que vêm as teorias mais avançadas, as tecnologias de ponta, os trends, a moda, essa merda toda, a música toda, donde é que achas que isso vem tudo? Nós saímos e sai tudo connosco!
 Fleur levantou os olhos da fotografia para o Prince Julian e pensou naquela palavra. Nós. «Mas tu agora estás connosco!», dissera-lhe muitas vezes a mãe, Agnes, por vezes em tom de reprovação mas geralmente satisfeita, sempre que Fleur perguntava alguma coisa sobre a sua vida antes dos Países Baixos, sobre as outras crianças do orfanato, sobre porque a tinham escolhido. Era uma frase que amiúde lhe vinha à cabeça como um portão espesso de ferro, como se ao dizê-la Agnes a puxasse pelo colarinho para longe das suas fantasias sobre a sua curta vida no Haiti e batesse com o portão atrás delas, trancasse o portão, atirasse a chave na retrete, puxasse o autoclismo, fechasse também a porta da retrete à chave, et cetera, et cetera. Fleur ouvira a frase tantas vezes durante a puberdade que a curiosidade que tinha sobre a sua terra natal se havia traduzido numa enorme vontade em sair de Tilburg. Baldava-se frequentemente às aulas e saía em Amesterdão às escondidas. Tinha amigos e amigas que nunca levava a casa. Tirava notas medianas. No seu último ano de escola, planeou a fuga e fugiu. Mas sobre os Países Baixos, sobre a Europa, as estruturas e os efeitos, o seu lugar no meio disso tudo, sobre isso ela nunca pensava.
 — És tu? — perguntou ela, ficando desconfortável.
 — Não! — berrou o Prince Julian mais alto ainda. Soltou um suspiro frustrado e atirou a moldura para o lado no sofá enquanto se sentava, como se tivesse acabado de tentar explicar teorias fanonianas a um nazi.
 — Não estou a perceber — retorquiu Fleur.
 — Este é o meu irmão Kadar — indicou o Prince Julian, apontando para a foto.
 — Ele não é mesmo meu irmão, mais tipo um primo. É uma longa história. Mas isso também não tem nada a ver. Eles querem-nos todos fora daqui. Passam o tempo a não quererem isto e a não quererem aquilo e quando querem alguma coisa é só para não darem a entender o tipo de pessoas que realmente são. Só precisamos de andar por aí e vivermos as nossas vidas para nos lavarem o cérebro, percebes?
 O Prince Julian inclinou-se para a frente para agarrar a caneca. Os seus espessos caracóis pretos pendiam-lhe sobre o ombro. Fleur não sabia se concordava com ele. Mas sabia que mataria por um cabelo daqueles. Na Afro Cosmetics da rua Hommel era possível gastar o salário de um mês inteiro por algo assim. E ainda teriam de o encomendar.
 — Estou simplesmente tão farto disto — disse o Prince Julian quando Fleur não reagiu.
 — Sim, eu também — anuiu Fleur. E era verdade. Sentia-se subitamente perdida. Talvez fosse a raiva do Prince Julian sobre o brexit ou o facto de ele também não parecer perceber o que raio se estava a passar com o mundo. Prince Julian abanou a cabeça e pescou um maço de tabaco de entre as almofadas do sofá.
 — Devíamos mas era desaparecer todos. A ver se gostavam disso — disse ele enquanto metia dois cigarros entre os lábios, acendendo-os ao mesmo tempo. Um dos cigarros era para Fleur. Ela começou a fumá-lo agradecida.
 — Em casa as coisas são melhores? — perguntou ela vendo que Prince Julian não ia explicar melhor a sua tirada anterior.
 — Querida, esta é a minha casa. Se for para o Irão matam-me logo — disse, estalando os dedos.
 — Não é que leve a mal. Eu não conheço lá ninguém e ninguém lá me conhece a mim, porque é que fariam alguma coisa por mim? É diferente, sabes.
 — Sim, eu sei — disse Fleur e de repente ficou com uma vontade imensa em deixar de existir, visto o Prince Julian também não parecer ter uma alternativa. Ficou ali a fumar o cigarro até ao fim. O Prince Julian parecia estar imerso nos seus pensamentos, ficou a abanar a cabeça até acabar o cigarro e enfiou a ponta acesa na caneca cheia. Ainda ficaram os dois a ver as notícias durante um bocado. Fleur gostava de ouvir o Prince Julian quando ele se zangava com as notícias nacionais, as notícias internacionais, as notícias de economia, a previsão do tempo, sempre a mesmíssima coisa, até com os anúncios. Ele era entusiástico, brincalhão, fogoso. Fleur tinha-se sentido tímida e deslocada a vida toda. A raiva dele empolgava-a de forma estranha, como se finalmente alguém falasse sobre alguma coisa. Só era stressante quando ele lhe fazia perguntas sobre algum dos segmentos das notícias. Aí era como se a credibilidade dela enquanto estrangeira fosse posta à prova.
— Isto é treta, right? O que é que interessa se o autor do crime é negro? — Suores frios, logo. Era como aquela primeira vez em que entrou sozinha num cabeleireiro especializado em cabelos crespos. A senhora que a atendeu perguntou-lhe pela sua rotina de cuidados com o cabelo e Fleur sentiu-se instantaneamente inflamada de vergonha, como se a senhora lhe tivesse carregado num botão perto das entranhas.
 — Não tenho nenhuma — teve de dizer.
 — Filha — suspirou a senhora. Tristonha, remexeu os caracóis de Fleur e em seguida lavou-os com uma grande quantidade de champô hidratante.

 O Prince Julian desaparecia volta e meia para dentro da cozinha. Depois voltava com um cinzeiro ou com mais chá. Estava sempre a fazer alguma coisa e nunca terminava nada. Fleur já achava mágico o suficiente poder observá-lo em ação, participar não era necessário. Ele abria a câmara do telemóvel para ver como é que estava, ordenava pacotes de batatas fritas e latas de café de um lado para o outro nos armários da cozinha, deixava-se cair ao lado dela no sofá para acender um cigarro, depois apercebia-se de que ela ainda estava sentada ali e mudava-se para o outro sofá para, passados cinco minutos, se voltar a levantar e marchar em direção à casa de banho. Esta performance a solo prolongou-se algumas horas. Fleur encheu-se de bolachinhas de amêndoa até ficar enjoada. As notícias não paravam, um desastre a seguir ao outro, e ela esperava pacientemente até que o Prince Julian voltasse a ter motivos para criticar a Europa, os Países Baixos, o Ocidente inteiro.
 — Eu gosto disto aqui, mas eles são uns hipócritas — suspirou quando veio pousar uma taça com batatas fritas. Um relógio noutro quarto dava as seis horas. Fleur sentia que concordava com ele.
 — Mas e então? — perguntou ela.
 — Nada, isso é que é fodido, não é? Não podemos fazer nada. Eu estou aqui preso e tu estás aqui presa. Temos umas quantas oportunidades, mais do que isso só nos resta aguentar. É terrível. Não somos nada.
 — Iá.
 — Mas também é na boa, sabes. Estou feliz, tenho pessoas fixes à minha volta, tenho-te a ti, acho que até curtimos um do outro, sabes? — O Prince Julian acenou de forma convincente, depois pareceu dar-se conta outra vez de algo terrível e voltou a abanar a cabeça. Aquilo parecia ser um tique típico dele, como se estivesse constantemente a passar por um turbilhão de emoções que mal conseguia controlar. Parecia ser fatigante, pensava Fleur. Apetecia-lhe fazer alguma coisa que o pudesse ajudar. — De qualquer forma, eu gosto de ti — disse ela. — Só não penso tanto no estado do nosso país quanto tu, acho eu.
— Why not? — perguntou o Prince Julian. Tirou uma batata frita da taça de plástico, mas não a comeu, em vez disso pousou-a em cima do joelho e começou a fazer tranças no cabelo.
 — Em que raio é que se pode pensar mais? Até quando estou no supermercado penso nisso!
 — No supermercado penso nas coisas de que preciso — disse Fleur. Ao que parece o Prince Julian achou aquilo uma resposta de merda. Voltou a abanar a cabeça. Fumaram mais um cigarro. — Nunca te podes deixar adormecer — disse ele só passados uns minutos, tinha atado um elástico na ponta da trança e estava sentado com uma mão sobre a outra a olhar fixamente para um ponto à sua frente —, tens de estar sempre ligada.

Tradutor

XÉNON CRUZ

Ano de nascimento: 1991
Nascido: Portugal 
Vive e trabalha em Amesterdão, Holanda

– Publicação de «Éticas de Tradução: Da Visibilidade à Diferença» em Via
Panorâmica (2017), http://ojs.letras.up.pt/index.php/VP/article/
view/3302
– Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra
– Mestrado em Tradução pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa
– Premiado com JRAAS Seal pelo Centre for English, Translation and
Anglo-Portuguese Studies
– Traduz de holandês/flamengo e inglês para português





  

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