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Fronteira- Festival Literário de Castelo Branco: " A pós-verdade em tempo de idiotas."


A 5ª edição do Fronteira- Festival Literário de Castelo Branco promoveu conversas sobre como a ficção e a realidade formam opiniões.  A pós-verdade foi a debate no dia das mentiras 



Há um acordo tácito entre o leitor e os jornais/jornalistas no primeiro dia de Abril: As mentiras são toleráveis. O consumidor de informação olha para a primeira página de um jornal com alegre desconfiança. Ali há uma mentira a querer passar por verdade. É um jogo praticado há vários anos. Por vezes, os mais incautos são levados a acreditar na história contada. No dia seguinte, a verdade é reposta. O incrédulo leitor percebe que caiu na armadilha.
No caminho para a Biblioteca de Castelo Branco, onde iriam ocorrer grande parte das conversas, várias papelarias expunham primeiras páginas. Depois de lidas, ficou a pergunta: Será que Centeno foi mesmo sondado para o lugar de Dijsselbloem? 
Rui Cardoso Martins, em conversa com o jornalista Hélder Gomes, acreditou na informação, num primeiro momento. Depois, percebeu que era dia das mentiras. Durante a conversa, percebeu-se que a dúvida ainda resistia.
O autor de "E se eu gostasse muito de morrer" afirmou que algumas das melhores expressões deste princípio de século foram inventadas por idiotas. Factos alternativos, por exemplo, foi uma frase utilizada pela primeira vez por Kellyanne Conways, Conselheira do Presidente, numa entrevista a "Meet the Press".
Neste dia das mentiras, ou "April Fools Day", Donald Trump foi considerado como o "Rei dos Idiotas", no rescaldo do tradicional desfile em Nova Iorque. Foi eleito de forma unânime.   
Ignorar a sua própria ignorância é um dos seus problemas, afirmou Rui Cardoso Martins. 
No desfile em Nova Iorque, Donald Trump foi representado por um boneco gigante sentado numa sanita com a frase "Make Russia Great Again".
Depois de a uma visita à Rússia, por causa de um romance que estava a escrever, Rui Cardoso Martins passou a compreender as diferenças entre os dois presidentes. Vladimir Putin não exibe a ignorância de Trump. A sua competência linguística é louvada pelos seus compatriotas, assim como a frequente citação de clássicos da literatura russa. 
O escritor pode criar factos alternativos. Essa função não pode ser ocupada pelo jornalista ou, nos casos mencionados, pelos políticos.
A "suspensão da descrença" foi referida por Jaime Rocha, recuperando a expressão  de Samuel Taylor Coleridge, num século em que as expressões não eram “inventadas por idiotas". A ficção pode utilizar essa suspensão no "jogo" com o leitor. Hoje, a informação difundida principalmente através das redes sociais rivalizam com a ficção. A "suspensão da descrença" está a ser aplicada à realidade. No entanto, essa suspensão não faz parte da relação entre jornal/jornalista e leitor. Ao jornalismo cabe informar sobre o que está realmente a acontecer. A ficção põe o leitor a questionar-se. A verdade não é essencial à ficção; só a verosimilhança. No entanto, é um facto que ficção e informação partilham cada vez mais o mesmo espaço. Vejamos um caso que faz agora 40 anos, a propósito do dia das mentiras: 
O jornal The Guardian, a um de Abril de 1977, publicou uma reportagem sobre um país chamado San Seriffe. Essa reportagem de sete páginas apresentava informações minuciosas, como um mapa, o nome do arquipélago e da capital do arquipélago, do governador que, em regime ditatorial, governava o país. As sete páginas tinham ainda artigos sobre a política monetária, as características da economia, o impacto do turismo e ainda comentário político ao regime ditatorial. Havia também publicidade, referente ao arquipélago, e um anúncio de emprego. "The Guardian" recebeu imensas cartas e telefonemas de leitores a interrogarem sobre como poderiam passar lá férias e ainda várias candidaturas a essa vaga em San Seriffe.
Era tudo falso. A credibilidade da reportagem estava na verosimilhança e não na verdade. A ficção tomou conta do espaço dedicado à informação. Foi há quarenta anos. Hoje, a desinformação é mais uma actividade profissional, com “sites” de "fake news", do que uma brincadeira do dia das mentiras. 
Fernando Pinto do Amaral, na conversa mantida com Jaime Rocha e João Céu e Silva (moderador), afirmou que nesta "floresta de enganos" já não há honra e vergonha. Todos estamos, até certo ponto, mal-informados em áreas que não dominamos. A guerra na Síria é um exemplo. A complexidade existente faz com que não compreendamos muito do que acontece. "Já não sei em que acredito. Tenho fome de verdade", afirmou o autor de "Manual de Cardiologia". 
A informação recebida pelo consumidor é vital. O direito à informação é valor essencial em democracia.
No berço da expressão "factos alternativos", a Sociedade Interamericana de Imprensa veio afirmar que "O quarto poder é uma das marcas da democracia norte-americana; uma imprensa livre funciona como controlo sobre o poder governamental. (…) Embora seja comum haver tensões entre a imprensa e a Casa Branca, a retórica da Administração de Trump não tem precedentes e ameaça minar a capacidade dos meios de comunicação" 
A relação da comunicação social com o estado democrático é da mesma ordem de importância dos três poderes fundamentais desse mesmo estado: O poder legislativo, o poder judiciário e o poder  executivo.
A miscigenação entre factualidade e ficção fez com que o ex-Ministro da Justiça Laborinho Lúcio só enveredasse pela escrita de romances após a sua reforma como magistrado. O autor de "O Chamador" preocupou-se com a imagem, pois procurando a verdade e os factos, não queria entregar-se à ficção. Poderia não ser bem-entendido.
Em entrevista com Ana Sousa Dias, Álvaro Laborinho Lúcio conseguiu, magistralmente, fazer a ligação entre a Justiça, um dos pilares da democracia, e a ficção:
"Se nós caminharmos ao longo da história do Direito e da Justiça e ao longo da história do Teatro,  vamos encontrar semelhanças que têm paralelismo quase constante. (…)  Eu próprio no Centro de Estudos Judiciários, trabalhava o efeito de distanciamento de Bertold Brecht e dizia que qualquer juiz tinha de conhecer isso como técnica de julgamento, ou seja a capacidade de se afastar ou recuar perante o que é evidente  para depois questionar o que é evidente e o que não é evidente. Tudo isto está tratado em Bertold Brecht."  
O dia em que se debateu a pós-verdade, em Castelo Branco, viria  a terminar com a entrevista de Hélder Gomes a Lídia Franco e Vítor de Sousa. Os dois actores sublinharam uma ideia que Rui Cardoso Martins havia mencionado na primeira mesa desse mesmo dia: a ideia de que os artistas têm capacidade de pegar nas cordas do tempo e prever o que vai acontecer. Os artistas preparam-nos para o futuro. Foi o que aconteceu com o "Tal Canal", que estava muito à frente do seu tempo. 
O Fronteira – Festival Literário de Castelo Branco levou à capital de distrito cerca de 20 convidados que, entre os dias 29 de Março e 1 de Abril, visitaram escolas, participaram em mesas de debate e deram “workshops” com o objectivo de analisar conceitos como pós-verdade, possibilidade de expressão, direito de ser informado e liberdade para criar. 




Mário Rufino





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