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Fólio: Entrevista com Jón Kalman Stefánsson









Era uma das presenças mais aguardadas no Fólio – Festival Literário Internacional de Óbidos. Jón Kalman Stefánsson veio do frio e desmontou alguns lugares comuns da crítica literária sobre a sua obra. Durante a sua participação, o autor escandinavo espalhou boa-disposição e compensou a frustrante entrevista dada por V.S. Naipaul, um dos grandes nomes da edição de 2016.

Horas antes do encontro marcado com os seus leitores, o autor de "O Coração do Homem" deu uma entrevista ao Diário Digital, em "The Literary Man- Óbidos Hotel".
"O Coração do Homem" (Cavalo de Ferro), recém-chegado às livrarias, fecha a trilogia proposta pelo autor. "Paraíso e Inferno" e "A Tristeza dos Anjos", obras antecedentes, estabeleceram Stefánsson como um autores escandinavos contemporâneos mais lidos em Portugal.
O seu desconforto com fotos e entrevistas depressa foi substituído pela disponibilidade própria de um bom conversador. Ainda antes das perguntas, Stefánsson falou sobre a sua vida de jornalista. “Foi no século passado”, afirmou. Era o tempo dos gravadores de cassetes. Contou que estava sempre preocupado com o facto de a cassete poder acabar e ele não reparar. Chegou a perder informação. Os gravadores digitais resolveram esse problema. Não tivemos que repetir nenhuma pergunta ou resposta.
Teve a ideia de escrever "Paraíso e Inferno" depois de ouvir um programa de rádio. O que causou tanto impacto? 
Sim, foi num programa de rádio em 1995. Era sobre uma mulher notável do norte da Islândia. No meio do século XIX, a Mulher não tinha quaisquer direitos. Uma mulher não podia ir à igreja sem o consentimento do marido. Era a lei. 
Esta mulher notável tornou-se rica e poderosa. Por causa disso, ela afrontou o poder exercido pelos homens.  Para mim, a história era sobre os direitos das mulheres, mas também sobre a supressão por poderes invisíveis, "sem cara". Eu sabia que tinha de a escrever, mas, naquela altura, eu estava a escrever o meu primeiro romance e tive que pôr esta história de lado. Nunca deixei de pensar que, mais cedo ou mais tarde, tinha de a escrever.
E estava destinada a ser um romance? 
Eu só escrevo romances. Bem, o meu primeiro livro de ficção é considerado por algumas pessoas como um conjunto de narrativas breves. Para mim é um romance.
Pareceu-me existirem muitos confrontos em "Paraíso e Inferno": Vida versus morte,  escuridão versus luz, homem versus natureza.
Eu nunca escrevo a pensar nisso. Não decido o que vou fazer e como o vou fazer. A minha mente não trabalha assim. Quando escrevo tenho, obviamente, uma história na minha cabeça, mas assim que a começo a escrever tudo começa a mudar.
Não segue um plano... 
Não. Tenho alguns apontamentos antes de começar, mas depois de dois ou três dias a escrever deito-os fora. São inúteis. De certa forma é como tocar música. Improviso. Tens um "feeling" de que algo vai acontecer, sem ter, no entanto, uma pista do que vai acontecer.

Aquela "neblina" e o ritmo que existem na narrativa vieram da poesia?
A história em si é importante, mas está longe de ser a única coisa que importa. O estilo é tão ou mais importante do que a história. O estilo é a forma como contas a história. Podes ter a melhor história do mundo, mas está morta se não a contares numa maneira interessante. 
É onde vê a sua voz autoral? 
Sim, exactamente. Quando começo a escrever é esta a pergunta principal: "como é que vou contar?" Obviamente que quero contar histórias, mas quero mais afectar muito o leitor. Não quero somente que leia e goste, mas que o afecte de uma maneira que o faça pensar na vida e na própria existência. Eu ponho pequenas coisas num texto que pretendem afectar o leitor constantemente. Não o faço de forma consciente. Quando escrevo não estou a pensar nisso. É a minha respiração que vai para o texto. Ser poeta explica, de certa forma. Escrever um romance é, em parte, técnica de poesia. A poesia é ilógica. E é a forma como pensamos. Nós quereremos acreditar que pensamos de uma forma lógica, mas é treta. O tempo não é em "linha recta". Não funciona assim. A nossa mente e o nosso sangue estão cheios de passado, de coisas que nos aconteceram e de palavras que alguém nos disse. Todo o tempo nós estamos parte no passado e parte no presente. Nesse sentido, o tempo não existe. O passado e o presente são invenções nossas. 
É a voz de poeta e não a de um jornalista... 
Sim... Quis contar a história dessa maneira para me aproximar da forma como pensamos e vivemos. Se lermos um romance linear, temos algum prazer. Mas eu não queria escrever dessa forma.  A vida não é linear. A vida não é ir numa direcção; é ir sempre em todas as direcções. Eu quero pôr isso nos meus textos.

Os espíritos são um "coro grego"? Pensou nisso quando escreveu? São muito portugueses. Estão-se sempre a queixar... 
[risos] Tem algo a ver com ilhéus. Vocês são quase ilhéus. Pensamos que os outros são melhores do que nós.
Tem a ver com técnica e com o que temos falado: a forma de contar uma história. Eu sabia que ia escrever sobre algo de há um século e não de há uma década. No entanto, eu não queria escrever um romance histórico. Queria também que o leitor sentisse que estava a ler sobre o seu próprio tempo e não só sobre o passado. Eu queria ter uma voz que conhecesse o passado e o nosso tempo.
Uma voz intemporal? 
Sim, sim...pode ser problemático. Essa foi a resposta. Não veio de uma forma lógica, simplesmente veio. Eu estava constantemente a pensar como contaria a história daquela forma. Depois escrevi a primeira frase na primeira pessoa do plural, "Nós...". Perguntei-me sobre quem era este "Nós". Então percebi que era a voz das pessoas que estão presas entre a vida e a morte. Elas têm a esperança de serem libertadas desse limbo e passar para a morte, caso consigam contar a história de tal forma que afecte muito o leitor. 
É muito importante que as palavras afectem os leitores para que estes libertem aquelas vozes.

Acerca do poder das palavras, Barour paga com a sua vida por andar sempre a ler "Paraíso Perdido", de Milton. Esta pergunta parece-me ser muito importante na trilogia: 
Para que serve a literatura? Torna as pessoas melhores? 
Sendo escritor, espero que o meu trabalho tenha algum significado. Se olharmos para a poesia e para ficção, ao longo da história, percebemos que os maiores autores escreveram sobre uma profunda necessidade de mudança, seja na sua própria vida ou mesmo na sociedade. Está sempre na história da Humanidade que a palavra pode afectar. Se olharmos bem para trás, para tempos bem antigos, as pessoas acreditavam que se podia lançar um feitiço com as palavras, caso estas fossem ditas num certo ritmo. Podiam levar as pessoas às lágrimas, matar, ou abrandar o tempo. Harry Potter não foi o primeiro a fazê-lo. 
Na Bíblia, como é que Deus cria o Universo? Com palavras. Se Deus ficasse em silêncio, tudo se manteria na escuridão. 
Tenho esta crença quase ingénua ou desesperada de que a palavra pode afectar as pessoas. Sei que a poesia ou a ficção não afecta as pessoas como afectava antes, mas continua a manter esse poder. E deve tentar exercê-lo. Se o autor desiste da ideia de que a palavra pode mudar o mundo, algum "poder negativo" prevalece. 

Em "A tristeza dos anjos", segundo livro da trilogia, Jens entrega correio, ou seja, ele entrega palavras. Continuamos atrás da salvação pelas palavras.
Era terrível ser carteiro na Islândia. Não se conseguia atravessar montanhas por causa do mau tempo. 
As cartas, nesse tempo, eram tudo. Eram consolação...eram tudo...tudo. Parte da nossa história está nas cartas. Nos arquivos, nós podemos ler cartas do século XVIII. Muitas das cartas contam-nos a história daquela época, sobre as condições de vida e ainda sobre os sentimentos das pessoas. As cartas sempre me fascinaram. O nosso tempo preocupa-me, pois ninguém escreve cartas. Agora só escrevemos “emails”, ou pomos fotos no instagram. Eventualmente as cartas vão desaparecer. Ninguém imprime uma carta, por isso o que se escreve acaba por desaparecer. Penso no que será de nós. Provavelmente nada. Não haverá memória colectiva.
Jens não terá oportunidade para entregar cartas.

As cartas são uma forma de combater a solidão?
Sim, sim... Naquele tempo, não havia praticamente aldeias na Islândia. As pessoas viviam em fazendas isoladas, tal qual eu descrevo nos livros. Não tinham visitas durante semanas ou meses. As cartas eram muito importantes. Receber ou enviar uma carta era espantoso. E não nos esqueçamos: o que fazemos de melhor por nós mesmos, muitas vezes, é escrever. Não é necessário enviar. Esquecemo-nos o quão importante é escrever. Vinte ou trinta anos depois, tens a tua vida escrita e os teus filhos podem lê-la.

Talvez seja melhor não...
Só quando morrermos! Aí já podem. [risos] 
A palavra escrita é extremamente importante.

Em "A Tristeza dos Anjos", Jens diz "Tu estás sozinho, eu estou sozinho, por isso não existe "Nós". É uma voz colectiva que representa os islandeses?
Sim e não. Se olharmos para Clint Eastwood, em alguns dos seus filmes, podemos "ver" o Jens. 
Jens é extremista. É considerado um personagem muito forte. Tal qual os "heróis" nos filmes de Clint Eastwood, Jens não fala muito. É um homem de poucas palavras. Na Islândia isso sempre foi considerado como força de carácter.  Jens é assim. No entanto, se analisarmos bem, também pode ser uma fraqueza. Não falas dos teus sentimentos. Em consequência, não sabes como lidar com eles. Não falas com os outros. Não dás nada. É mau para aqueles que te são próximos.

Podemos ver essa situação em Barour ["Paraíso e Inferno"], não podemos? Ele está sempre a ler e nunca fala. Os companheiros vêem isso como uma fraqueza.
Sim, exactamente. E ler muito não é "cool", na Islândia.

"O Coração do Homem", último livro da trilogia, começa algumas horas depois do fim de "A tristeza dos anjos". O livro começou a ser vendido esta semana. O que nos pode dizer sobre "O Coração do Homem"?
Lembro-me de quando publiquei o meu livro de ficção, em 1996, fazerem-me uma pergunta sobre de que se tratava o livro. Lembro-me de ter ficado bloqueado num silêncio. [risos] Percebi que nunca pensava num livro dessa forma. Primeiro fiquei embaraçado, mas depois percebi que tinha dificuldades em descrever porque não penso no livro assim. O meu trabalho é como uma sinfonia, para mim.
Contar a história não é o mesmo. É como a diferença entre descrever a comida e comê-la. Podes descrever a comida, mas não a saboreias. Contar sobre o que é o livro é deixar de fora quase tudo.
Temos que "comer" o livro. 
Sim, temos que "comer" o livro. Tude reside ou deve residir no estilo e nos detalhes.
Pode ser lido de forma independente dos outros dois? 
Pergunta complicada... O meu editor gostaria que eu dissesse que sim, imediatamente.  Eu sou o autor do livro. Eu não o li, só o escrevi. Perguntar-me como lê-lo... Eu sou a pessoa a quem não deves perguntar como deve ser lido. No entanto, sendo uma trilogia, é sempre melhor ler os três. É possível ler-se "Paraíso e Inferno" ou "A Tristeza dos Anjos", isoladamente, mas penso que se usufrui mais se se ler os três.
É mesmo o fim? 
"This is the end, beautiful friend", como disse Jim Morrison. Tive algumas queixas de leitores que queriam o quarto livro. Esse livro existe na mente dos leitores. 
 
Numa entrevista a "Icelandic Literature Center", afirmou que escrevia para chegar a alguma conclusão, para descobrir quem é, quem somos e o que andamos aqui a fazer. No fim desta trilogia, conseguiu chegar perto de uma resposta? 
Quando comecei a escrever estava convencido de que no fim -até por causa das vozes dos mortos- iria descobrir o que nos acontece depois da morte. Tinha tanta certeza, que chega a ser embaraçante. É ingénuo pensar que se consegue. Eu acreditava nisso.... E ainda acredito que consigo chegar à verdade derradeira, quando começo a escrever.
Não encontro, mas enquanto procuro acho sempre qualquer outra coisa que desconheço. Cito muitas vezes William Faulkner, o grande bebedor de Whisky. Ele disse que no processo de escrita  estava sempre a tentar alcançar o impossível. Ele sabia que não conseguia, mas valia a pena tentar. Eu concordo com ele; nisso e em gostar de whisky.

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=844968

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