João Paulo
Sousa (n.Porto, 1966) poderia ter feito de "O Rosto de Eurídice"
(Teodolito) um exercício exibicionista de cultura literária. Poderia, mas não o
fez. O ensaísta em áreas como Estética e Crítica Literária manteve o seu
perceptível conhecimento teórico no substrato de uma ficção bem conseguida,
envolvente e com um começo capaz de agarrar de imediato o leitor: "Demorei
muito tempo a compreender como poderia ser reconfortante a ideia da morte da
minha filha."
Em "O
Rosto de Eurídice" não existe a tentação de se credibilizar o romance
através de constantes alusões a ideias e autores canónicos, numa ostensiva
manipulação da atenção do leitor. A meta-literatura existe como corrente
interior do fluxo de consciência.
António,
personagem principal, tenta conciliar-se com o passado. A morte de Teresa, sua
irmã, reflecte-se no presente. As recordações desse acontecimento dramático
condicionam as relações amorosas e os simples gestos quotidianos. João Paulo
Sousa espelha o passado nas acções e pensamentos deste personagem que se move
entre uma casa de praia, uma cidade e um hotel à beira mar. António é dominado
por um jogo de compensações em que personagens se projectam noutras
personagens:
"(...) e
segundo, porque o rosto da minha irmã, ao confundir-se com o de uma mulher que
me provocava uma atracção sexual crescente, a qual, ainda assim, eu tentava
negar, interpunha-se entre mim e o objecto de desejo, como se apenas a Teresa
[irmã] fosse capaz de o satisfazer"
O escritor
portuense desenrola o tempo até à emancipação do seu principal avatar. O ritmo
da narração é lento, permitindo constantes analepses e a fusão de tempos num
presente proustiano.
A falibilidade
da memória adensa a neblina sobre o passado. A introspecção desenvolvida
pretende clarificar a razão das lembranças serem projecções tão vívidas.
O personagem
afirma que "um morto é o lugar de um vazio absoluto". O reflexo do
rosto da falecida Teresa desmente-o ao projectar-se em outras importantes
figuras femininas que lhe preenchem a vida. Este jogo de reflexos e
compensações é o pilar em que assenta a narrativa desta obra. A relação entre
António e Teresa tem paralelo com a de Orfeu e Eurídice. A ligação entre estes
dois personagens da mitologia clássica é essencial para a descodificação do
texto.
A
impossibilidade de António é a impossibilidade de Orfeu: resgatar da morte a
pessoa amada. Olhar para o rosto de Teresa tem um custo elevado. Se Orfeu perde
Eurídice por olhar para o rosto dela, António perde as pessoas no presente por
ter, sempre, o rosto da irmã na cabeça.
O episódio
bíblico protagonizado por Lot é, igualmente, actualizado pelo autor. António,
ao olhar constantemente para trás, fica preso ao passado.
O conhecimento
da teoria da literatura é demonstrado uma vez mais num episódio passado no
teatro. O ficcionista consegue disciplinar o ensaísta. Ele sugere, não explica.
Na peça de
teatro a que António assiste há um espelho no centro do palco.
Sentado na
primeira fila, o narrador vê o seu rosto naquele espelho. A interpretação do
que vê depende, como ele próprio conclui, da perspectiva que é adoptada.
António está "dentro" da peça. O sentido do que é visto depende do
que ele leva para o palco. A avaliação que faz dos personagens dessa peça
depende não só delas próprias, mas também do espectador.
Este é
essencial na construção de sentido:
" (…)
talvez a preponderância que insisti em atribuir ao homem de preto [personagem
da peça] encontrasse também uma justificação exterior à peça; na verdade, eu
bem poderia sentir que me identificava com ele, ou com a sua obsessão em
relação à irmã, de que estava afastado há anos, ainda que essa identificação
fosse sobretudo de pendor negativo, marcada por aquilo que, na personagem, me
parecia ser a projecção de um dos meus interditos".
Nesta passagem,
que sublinha a arte como catarse, mantém-se o jogo de sombras e projecções e é
adicionado uma vertente defendida na Teoria da Recepção.
Segundo Hans
Robert Jauss, em "A literatura como provocação", "A recepção
interpretativa de um texto pressupõe sempre o contexto anterior da experiência
em que se inscreve a percepção estética".
João Paulo
Sousa conseguiu criar mais do que um conjunto de personagens numa boa história.
O autor criou um tempo paralelo, fundindo passado e presente.
A qualidade de
“O Rosto de Eurídice” não deve passar despercebida.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=838278
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