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"Uma rapariga é uma coisa inacabada", de Eimear McBride






Eimear McBride (n.Liverpool, 1976) tem reunido a admiração dos críticos e dos júris de vários prémios literários.
“Uma rapariga é uma coisa inacabada” (Elsinore), primeiro romance da autora, foi distinguido com os prémios “Baileys Women´s Prize for Fiction”, “Goldsmiths Prize”, “Kerry Group Irish Novel of the Year”, “Desmond Elliott Prize” e o Geoffrey Faber Memorial Prize”.
Joshua Cohen, em “The New York Times”, descreve-o como “future classic”, a escritora Anne Enright, em “The Guardian”, também diz que “The result is an instant classic”. As vozes de Beckett e Joyce, assim como os princípios do modernismo irlandês, sentem-se na prosa, de acordo Wood e a própria autora A unanimidade em torno do livro da escritora inglesa garante um sucesso comercial? Dificilmente. “Uma rapariga é uma coisa inacabada” resiste a leituras superficiais. Está no antípoda do “walk in the park”.  Eimear McBride apresenta-se com olhos postos em leitores exigentes. As personagens desta violenta história não têm nomes. As suas características psicológicas definem as respectivas identidades. O interlocutor não é definido, mas é a ele que cabe a responsabilidade de nomear e interpretar o texto:“Para ti. Que vais. Vais dar-lhe nome. Nos pontos da sua pele ela vai usar o teu poder de decisão” A história deste livro tem pontos de contacto com a história pessoal da autora. Eimear McBride, em entrevista a “Faber & Faber”, disse que, aos 17 anos, mudou-se para Londres para estudar Drama. Seis meses depois de se graduar, um dos irmãos ficou doente. Durante um ano, tal como a personagem, Eimear McBride fez várias viagens entre Londres e a Irlanda, em visita a esse irmão. No livro, a família é composta por uma mãe devota, um filho com atraso cognitivo, devido a uma operação a um tumor no cérebro, e uma irmã. Por vezes, aparece um tio. Aparece pouco, mas estraga muito. Não há uma figura paterna. O pai deixou-os. Havia de morrer com uma apoplexia. A narração é entregue à filha. As suas palavras saem cheias de culpa. É um peso carregado e raramente aliviado. A relação familiar é disfuncional. A mãe entrega-se à fé, a filha entrega-se ao sexo, o filho… o filho é a culpa feita carne. O atraso do rapaz vai sendo mais evidente com o tempo. Os colegas gozam com ele, a irmã não percebe como é que ele deixa isso acontecer, a mãe...reza e nega a realidade. Não quer aceitar. Eimear McBride vai escarafunchando, sem dó, até expor uma dor ainda maior, numa gramática manipulada e deturpada. Tal como a mente da narradora. As frases de Eimear McBride ora transgridem a velocidade máxima permitida ora se tornam espásticas e limitadas a uma palavra. São frases que irritam e desconcertam. A agramaticalidade não é um gratuito exercício de estilo. A personagem quebra convenções, sofre numa família disfuncional e apresenta-se emocionalmente destruída. A linguagem é o espelho dessa vivência.


A torrente de consciência proporciona o encadeamento de diferentes tempos e vozes (ou lembranças dessas vozes). Não é a cronologia que condiciona o desenvolvimento da personagem. O tempo é relativo e tem como eixos os diversos traumas da narradora.
O sentido torna-se nebuloso devido à incoerência do pensamento e das estruturas frásicas. Tudo nos parece inquietante, hipnótico e impossível de largar.
Pudesse o leitor agarrar esta rapariga sem nome ver-se-ia numa situação delicada. Não saberia se a salvava ou acabava com esta agonia.
A imagética cristã está muito presente na prosa de McBride. A devoção da mãe é ostensiva, e as preces em busca de misericórdia são frequentes. A simbologia ganha outra dimensão tanto na estrutura como nas diversas pistas que McBride vai deixando ao longo da narrativa.
O caminho da narradora é um calvário desde o princípio até ao fim. Ela cai, levanta-se e caminha. Os obstáculos que vão surgindo deixam marcas cada vez mais profundas. As esporádicas ajudas são eliminadas ou reduzidas por novas contrariedades. A cruz é carregada sem a misericórdia da autora. Parece não haver hipótese de salvação. Enquanto a mãe reza, a filha escarnece:
“Dizer umas orações de merda de que adianta isso? Eu disse as minhas orações da noite todas as noites e olha-me só o que me fizeram.”
As hemorragias e o sexo são valores simbólicos na vida desta narradora. O sangue é constantemente referido. A narradora sofre diversos derramamentos. As agressões, as hemorragias nasais por causa do estado nervoso e a perda da virgindade demonstram os castigos físicos durante o caminho desta personagem. No entanto, a maior violência é auto-infligida. Esta criação de McBride castiga o corpo numa vertigem hipersexual.
A narradora, ainda menor de idade, perde a virgindade com o tio. A partir desse momento, a actividade sexual desenvolve-se até práticas masoquistas. As descrições são pungentes, não caem no gratuito e demonstram a complexidade da personagem “É bom não nos sentirmos puras”, chega a afirmar.
Tal como nos rituais cristãos será a água a via para a redenção. O baptismo é um renascimento aos olhos de Cristo. Possibilitará McBride uma saída para a sua criação?
A intensidade psicológica das personagens põe o leitor perto da apoplexia. Eimear McBride não facilita. “Uma rapariga é uma coisa inacabada” é para aqueles leitores que gostam de testar a capacidade de resistência em livros mais dolorosos. Na última página, suspira-se de alívio, sabe-se que se terminou um livro extraordinário, e tem-se vontade de tatuar “Eu li Eimear McBride e sobrevivi”.
Magnífico.

Mário Rufino

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=829644

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