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“O último Natal de guerra”, de Primo Levi



O lado menos conhecido de Primo Levi


Primo Levi (1919-1987) fez do inferno o núcleo da sua criação literária. A vida do autor italiano é indissociável dos campos de extermínio. Perto do fim da II Guerra Mundial, os prisioneiros de Auschwitz e campos circundantes foram retirados devido à proximidade das forças aliadas. A deslocação para outro campo foi denominada Marcha da Morte. Uma doença incapacitante permitiu que o autor italiano e judeu ficasse na enfermaria e sobrevivesse.
Primo Levi viria a escrever um dos mais medonhos e brilhantes livros sobre a experiência humana em condições absurdas. O já muito estudado “Se isto é um homem” é um dos livros marcantes da literatura universal.
A experiência nos campos de concentração é contada sem qualquer autocomiseração. A honestidade põe a descoberto a sempre emergente possibilidade do mal, mesmo na vítima. “Se isto é um homem” seria mais do que o suficiente para inscrever Primo Levi na História da Literatura, mas ainda há qualidade muito apreciável em outras obras.
Entre elas, “O último Natal de guerra” (Cotovia).
Esta obra póstuma é composta por vinte e seis textos publicados durante dez anos em diversos jornais. O absurdo e a brevidade das narrativas são matéria comum a todos os textos.
O contraste entre a verdade e o paradoxal tem um efeito perverso. O genocídio causa menos perplexidade do que um canguru numa festa, uma poça alienígena a fazer uma entrevista, ou a existência de seres bidimensionais em um país bidimensional.
A profícua narração sobre o genocídio perpetrado pela Alemanha Nazi fez que com que o choque perante tal aberração fosse atenuado ou desaparecesse. Neste livro de narrativas breves, que conta também com textos sobre os campos de concentração, é o inverosímil que causa estranheza. É a impossibilidade de um canguru participar num jantar volante que põe o leitor em sobressalto. Não é a narração do assassínio de milhares de seres humanos. O maior absurdo inscreveu-se no real. O texto que dá nome ao livro é demonstrativo. Um rasgo de bondade num campo de concentração é visto como uma impossibilidade lógica. Não é a maldade que constrange; é a bondade.
A raiz do ódio, contrariada pela personagem de “O último Natal de guerra”, é ficcionada em “As duas bandeiras”. O ódio é ensinado até integrar a cultura de uma comunidade. A lógica é deturpada devido à assimilação de ideias disparatadas. A reconquista de um vulcão é o o exemplo dado por esta parábola:
“Em todas as escolas da Lantânia ensinava-se que a anexação do vulcão por parte dos gundúwios tinha sido uma empreitada de bandidos, e que o primeiro dever de um lantano era o de se treinar militarmente, odiar a Gundúwia com todas as suas forças (...) Que o vulcão, a cada três ou quatro anos, devastasse dezenas de aldeias, e todos os anos provocasse terramotos desastrosos mão parecia ter importância: lantânico era, e Lantânico voltaria a ser”
A violência é constante na prosa de Levi. Em “Força Maior”, a perspectiva de M. sobre a vida é alterada após ser arbitrariamente agredido.
Primo Levi utilizou diversos e extravagantes pontos de vista na análise sociológica e psicológica do ser humano. Neste livro, há espaço para entrevistas a uma bactéria intestinal, a uma gaivota, a uma aranha, e a outras personagens nada habituais. A substituição de elementos esperados por inesperados causa estranhamento. Não é a história nem a estrutura conservadora dos textos que causa impacto. São os elementos pouco habituais que, utilizados estrategicamente, incutem estranheza no leitor.
Kafka fê-lo, com a reconhecida qualidade, em “Metamorfose”. Levi, leitor do autor checo, compartilha essa estranheza, sendo, contudo, um escritor que procura mais a mente humana do que os mecanismos que a limitam. Essa procura é visível no conto “O fabricante de espelhos”, em que se nota também a presença de obras de Pirandello. Este conto sobre um homem que constrói um espelho metafísico está ligado pela temática a “Um, ninguém e cem mil”. Pirandello, escritor da mesma nacionalidade de Levi, interrogou-se sobre as diferentes perspectivas que compõem a sua imagem. Cada pessoa, uma ideia.
Tal como Vitangelo Moscarda, em “Um ninguém e cem mil”, Timóteo percebeu que “não havia duas imagens que coincidissem entre si: em resumo, não existia um verdadeiro Timóteo”
Primo Levi registou em obras maiores a sua memória. É um escritor mais de reconstituição e de testemunho do que de imaginação. “O último Natal de guerra” apresenta características menos vistas do autor italiano. A capacidade imaginativa de Levi fomenta a estranheza. O antropomorfismo das personagens mais surpreendentes obriga o leitor a adequar as suas expectativas em textos ficcionais que compõem este livro.

Nos textos de não-ficção presentes neste livro, há esse exercício de memória. O biografismo sustenta narrativa, que perde em estranheza, mas ganha em pungência.

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=827942

Mário Rufino

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