Cláudio Magris e Howard Jacobson em uma das
melhores edições do “LeV- Literatura em Viagem”
A 10ª edição do “LeV-Literatura em Viagem”
decorreu de 13 a 15 de Maio, em Matosinhos. Uma Exposição, várias visitas a
escolas, a Feira do Livro, uma Oficina e a presença de autores consagrados
levaram a que esta edição tenha confirmado o LeV como um dos principais
festivais literários de Portugal.
Há várias narrativas antes de cada gesto.
São as histórias que moldam os futuros rituais. Matosinhos, cidade litoral, tem
a sua génese em lendas que conjugam irrealidade com o suor de quem trabalhou ao
longo dos séculos seguintes.
A mais antiga imagem de Jesus crucificado
está em Matosinhos. Segundo a lenda, a imagem em madeira de Cristo deu à costa
no ano de 124. Havia sido esculpida por Nicodemos, que fora testemunha da
crucificação de Jesus. A Bíblia refere que Nicodemos e José de Arimateia
retiraram da cruz o filho de Deus. Nicodemos guardou o Santo Sudário. José de
Arimateia foi o fiel depositário do Santo Graal.
Nicodemos começou a esculpir a imagem de
Jesus crucificado na madeira, baseando-se na imagem do Santo Sudário.
Devido à perseguição perpetrada pelos romanos, ele
viria a lançar as esculturas ao mar Mediterrâneo. Uma dessas imagens veio dar a
Matosinhos, mas sem um braço. Esse braço viria a ser descoberto cinquenta anos
depois por uma mulher em busca de lenha para a lareira. Quando depositou esse
pedaço de madeira no lume, ele saiu das chamas. Uma e outra vez. Foi então que
a sua filha, surda-muda, disse-lhe em bom som que estavam perante o braço em
falta na escultura.
Devido a esta lenda, a cidade entrega-se
uma vez por ano às Festas de O Senhor de Matosinhos. As estradas são ocupadas
pelas barracas de artesanato e bugigangas. Os Matraquilhos rivalizam com as “vintage”
máquinas de flippers, os carrinhos de choque sobrevivem às novas tecnologias,
as farturas apelam à gula. Atira-se ao alvo para se ganhar um boneco. Conversa-se
ao balcão, entre uma bifana e uma cerveja. E há a demonstração de fé na
procissão.
Matosinhos é feita de histórias. A
religião, o futebol e a literatura ocuparam os espaços da cidade entre 13 e 15
de Maio.
O “LeV - Literatura em viagem” teve a sua
10ª edição. E é possível que tenha sido a melhor.
Em fim-de-semana de Oliveirense-Leixões,
de procissão, da Festa de O Senhor de Matosinhos e de decisão da Liga
Portuguesa de Futebol, a Galeria Municipal encheu para se ouvir falar de
literatura. A 10ª edição do LeV confirma que a Câmara Municipal e a
Booktailors, a quem coube a produção executiva, têm uma questão para resolver:
A Galeria Municipal já não consegue responder à quantidade de público que
procura assistir às sessões. A sala central esteve sempre cheia. As salas
laterais, onde numa delas se poderia ver a exposição “um dia na Terra -
fotografias do quotidiano do Planeta” (Gonçalo Cadilhe), receberam mais
público, apesar de não assegurarem a mesma visibilidade para o palco.
De Homero a Thomas Mann, numa biblioteca
com cinco quilómetros
A 10ª viagem do Lev começou numa sala
maior, mas ainda assim insuficiente para tanta gente assegurar um lugar sentado.
José Pacheco Pereira procedeu à
Conferência Inaugural, no dia 13 de Maio, no Salão Nobre da Câmara Municipal.
Em dia de Nossa Senhora de Fátima, Pacheco Pereira falou sobre as obras
fundadoras da nossa Civilização.
António Pacheco Pereira tem a maior biblioteca
privada do país. São cinco quilómetros de uma biblioteca que cresce metro e
meio por semana. O arquivo foi formado por três gerações e gasta quase todos os
proveitos financeiros do seu actual detentor. Foi o avô de Pacheco Pereira que
iniciou a pesquisa e aquisição de documentos, pois não são só livros, que hoje
possibilita conhecer a História da Europa através de uma viagem pelas
prateleiras.
Quando lemos os livros essenciais
encontramos uma viagem, afirmou Pacheco Pereira. Seja geográfica, como “Os Lusíadas”
de Camões e “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, ou mais psicológica/moral,
como “Divina Comédia”, de Dante Alighieri. A viagem é uma metáfora da vida. A
efectuada por Ulisses é, do ponto de vista cultural, a genética da cultura
europeia. Viaja-se física e culturalmente na imagética grega, que viria a ser
incorporada pelo cristianismo.
Desde os tempos de Homero, a literatura
mundial teve o minimalismo de Tchekhov, o ambiente psicotrópico de Lewis
Carroll, o universo concentracionário de Kafka, a metaliteratura de Cervantes e
a clarividência de Thomas Mann.
Prozac e livros
A literatura contemporânea mantém a sua
ligação à viagem.
Paulo Moura, autor de “Extremo ocidente”
(Elsinore) e Gonçalo Cadilhe, autor de “Passagem para o Horizonte” (Clube do
Autor), conversaram no dia 14, segundo dia do festival. Francisco José Viegas,
a quem coube a moderação, perguntou se se nasce viajante, ou se se aprende a
viajar.
Para Gonçalo Cadilhe, é necessário querer
viajar. Tem de haver predisposição para tal. A aprendizagem vem depois.
Aprende-se a viajar viajando.
Paulo Moura defende a atitude activa
perante a viagem. É necessário atitude, envolvência nas vidas das pessoas e
ainda criar enredos para se ser parte integrante da acção. A sensação que os
sítios lhe provocam tem muito a ver com a perspectiva. A viagem, como
deslocação física, não determinada nada; é a bagagem pessoal e o que se aprende
que determinam o efeito. “Tenho essa
tese: Viajar é sofrer”.
A globalização veio uniformizar os países
e os costumes. Para Paulo Moura, essa uniformização é superficial. Ultrapassada
a superficialidade imposta pelas cadeias de “fast-food” e vestuário, existe a
especificidade a descobrir.
Um dos sintomas de uniformização é a
própria língua. O inglês conquistou o lugar de língua franca. Em um evento com
escritores de várias nacionalidades e, pela primeira vez, em cooperação com a
“Literature Across Frontiers” a língua de Shakespeare possibilitou a
compreensão entre diversas culturas. Foi o que aconteceu na mesa “Novas Vozes”,
em que Andrés Barba (Espanha), Ilzé Butkuté (Lituânia) e Josefine Klougart
(Dinamarca) e em “Poderão os Livros Salvar o Mundo?” com Hélder Gomes
(jornalista Canal Q, Moderador), Ella Berthoud, autora de “Remédios Literários,
livros para salvar a sua vida - de A a Z” (Quetzal), e Clara Ferreira Alves,
jornalista e autora de “Pai Nosso” (Clube do Autor). No dia 15, último dia do
festival, numa conversa feita integralmente em inglês, Clara Ferreira Alves
afirmou que os livros podem salvar ou condenar. “A mim salvam mais do que
condenam”.
A sua actividade de repórter fê-la passar
por experiências dramáticas. Foi inevitável a construção de um certo cinismo
perante a morte e o perigo. É uma arma de defesa contra o horror presenciado.
Na sua opinião, a ficção não tem conseguido acompanhar a velocidade dos
acontecimentos na sociedade contemporânea.
A biblioterapeuta Ella Berthoud acredita
que o livro pode melhorar a vida das pessoas. A autora inglesa passa, nas suas
consultas, cerca de uma hora com cada paciente. Desta forma, consegue prescrever
o livro adequado para a maleita de quem procura a sua ajuda. E deu um exemplo:
Quando há o vício da Internet, Berthoud prescreve “A Cidade e as Serras”, de
Eça de Queiroz. É uma terapêutica que complementa a medicina tradicional. “Prozac e livros”, afirmou.
Ases de trunfo
A qualidade das
intervenções manteve-se elevada. Além das participações mencionadas, o LeV teve
ainda a contribuição de Patrícia Reis e Teolinda Gersão, na mesa “Conversa a
quatro mãos”, com moderação de José Luís Barreto Guimarães; Alberto S Santos,
autor de “Para lá de Bagdade” (Porto Editora), João Ricardo Pedro (Prémio Leya)
e David Toscana (Prémio Casa das Américas), dialogaram sobre “Viagens na minha
terra”. Filipe Morato Gomes, cronista e fotógrafo de viagens, participou na
mesa “Segredos da Pérsia”. A moderação das duas mesas foi entregue a Tito Couto
(Booktailors).
Cláudio Magris,
candidato ao Nobel da Literatura, e Howard Jacobson (Booker Prize) foram os
grandes trunfos da organização.
O escritor
italiano foi entrevistado pelo historiador e político Rui Tavares. Foi o ás de
trunfo lançado no 2º dia do festival.
Portugal é mais
do que um país de visita para Cláudio Magris. “O Conde”, conto da sua autoria,
tem como inspiração a foz do Douro. A língua portuguesa foi a língua de chegada
da primeira tradução de um livro seu.
A sua boa
disposição e charme foram notórios durante a permanência no Porto e em
Matosinhos. Na “Entrevista de Vida”, o autor de “Danúbio” disse que o trabalho
para “Uma Causa Improcedente”, editado este ano pela Quetzal, começou em 2009 e
baseia-se em uma pessoa real A realidade é muito mais rica do que a ficção,
afirmou.
Essa pessoa
dedicou o seu tempo a construir um Museu para a Paz. A colecção era constituída
por objectos e outros elementos relacionados com a guerra. Cada um desses
objectos é uma nota de rodapé na história universal. Depois dos objectos, o
personagem começou a procurar nomes.
Ele acabou por
morrer num incêndio, com causas pouco claras. De certa forma, este personagem
era um Minotauro dentro do seu próprio labirinto.
Um espectador
fez então uma pergunta, relembrando Vila-Matas: “Escrever é uma forma de
corrigir a realidade?”
Magris, que tem
Vila-Matas como amigo pessoal, disse que escrever complementa a realidade, em
vez de a corrigir.
“A realidade é uma série de futuros que foram
abortados”.
Em resposta a
uma outra pergunta, o escritor afirmou que, em “Danúbio”, não previa a queda da
cortina de ferro, mas já tinha a sensação de haver fissuras nessa cortina.
A política está
muito presente no pensamento de Magris. O escritor declarou ser um patriota
europeu. O seu desejo é votar num presidente europeu, dentro de uma organização
geográfica e política em que os países sejam regiões da Europa. Infelizmente
-declarou- a Europa está bloqueada politicamente.
No último dia de
festival, foi a vez de Howard Jacobson, Booker Prize com “A Questão Finkler”
(Porto Editora).
O escritor
inglês tirou fotos com os leitores, deu autógrafos e visitou a Livraria Lello
sem perder a capacidade de promover gargalhadas. E isso continuou na
“Entrevista de Vida”, com Tito Couto e Pedro Vieira (Booktailors).
“A comédia é o coração da literatura. Tem de se deixar a tragédia e a
comédia existir”, afirmou.
As anedotas que fazem rir são, segundo
Jacobson, uma defesa contra a tragédia da vida.
“Quando faço comédia tudo é pergunta”.
Quando interrogado sobre os seus
casamentos, o escritor inglês não perdeu o seu humor.
“Não fiquem aborrecidos se o vosso primeiro e segundo casamentos falharem.
É preciso prática”. E, de seguida, virou o feitiço contra os
entrevistadores, ao aconselhar as respectivas esposas a “despachá-los” e
partirem já para os seguintes casamentos.
A ironia incide constantemente em si
mesmo. Quando Jacobson contou à sua mãe que estava nomeado para o Booker, a Sra
Jacobson avisou-o de que não ia ganhar. Se ele tirasse uma foto das muitas
pessoas que ali estavam para o ouvir e a enviasse para a sua mãe, ela diria que
estava ali muito público, mas era para ouvir outro escritor. Não era para ele. “Ela faz isso para me proteger das
desilusões”.
Howard Jacobson é descendente de família
judia oriunda do leste europeu. A memória é essencial na transmissão de
conceitos e hábitos culturais. “Eu vivo
em memórias, eu vivo em memórias que não são as minhas”. Em “J”, publicado
pela Bertrand, as pessoas não querem saber da memória. Existem efeitos nefastos
quando se despreza a memória. O anti-semitismo é um desses efeitos. A contínua
recorrência desse fenómeno intriga o escritor inglês. Assim como o fenómeno
Trump. Ele é um palhaço, afirmou Jacobson. Assim como foi Mussolini. “Os palhaços parecem que estão sempre a
voltar”.
Segundo Jacobson, houve uma época que o Booker
mudava a vida de um autor para sempre; agora muda a vida de um livro para
sempre e a de um autor por um ano ou dois.
Religião, futebol e literatura.
Durante o fim-de-semana do LeV, houve Jesus
na cruz em procissão, bifanas e couratos no pão acompanhados de cerveja; o
Benfica foi campeão, o Leixões manteve-se na Segunda Liga, o presidente do
clube de Matosinhos foi preso, vários jogadores do Oriental, que jogaram na mesma
divisão que o Leixões, também. Alguns escritores anunciados não puderam participar.
Apesar de tudo isto, houve mais público neste festival literário do que em
alguns jogos da 1ª divisão da Liga Portuguesa de Futebol.
Desde a Oficina gratuita sobre edição,
leccionada por Paulo Ferreira (Booktailors), até às entrevistas com autores
consagrados internacionalmente, o livro esteve o centro das atenções.
O LeV desiludiu quem pensa que os
portugueses não gostam de livros e de conversar com os escritores. E ainda mais
quem pensa que escritores como Magris ou Jacobson não gostam de conversar com
os leitores.
Mário Rufino
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=825782
3 Comentários
Foi um prazer ouvir, Magris, não foi? Ele é muito bom
Mário