James Wood escreveu
sobre a qualidade de Elena Ferrante, em “The New Yorker”, e as suas palavras tiveram
réplicas em Portugal. No caso de Ferrante, justificam-se.
A discrição de
Ferrante é radical. Sobre a autora italiana (presume-se), The Guardian diz que
é “the global literary sensation that
nobody knows”. E aponta Zadie Smith, Jhumpa Lahiri e o já citado Wood como
seus fãs.
A procura febril dos
livros da autora e da respectiva identidade encontra as redes sociais como uma
forma de contágio. No twitter foi criada a hashtag #ferrantefever.
Em “História de Quem
vai e de Quem Fica” (Relógio d`Água), terceiro volume da série “A Amiga
Genial”, a tentação de procurar a autora nas suas personagens é patente no
diálogo entre Lenú (diminuitivo de Elena) e Gigliola:
“”Não sou eu que as faço, é a personagem
Sim, mas escreveste-as, muito bem, Lenú, tal e qual
acontecem, com a mesma porcaria.”.
Mas será mesmo
necessário saber quem é a escritora para se compreender os seus livros? É
possível ao leitor abdicar do “vício de propriedade”?
A qualidade da
escrita de Ferrante e a relevância dos temas abordados não necessitam do
mistério da identidade. Esse mistério tem o curioso efeito de dar mais
visibilidade comercial a uma autora que não quer aparecer. Ferrante já é nome
de pizza e motivo para turistas visitarem Nápoles. O enigma é importante na
venda de livros, mas é a qualidade da prosa que merece destaque.
Em “História de Quem
vai e de Quem Fica”, Elena Greco (ou Lenú), personagem criada por Ferrante,
procura emancipar-se. Autora de um livro de sucesso, não é levada a sério pela
crítica. Após o primeiro e bem-sucedido impacto do seu livro, o efeito
esvanece-se. Lenú desliza para o esquecimento. Excepto na memória das pessoas
que vivem no seu antigo bairro. Especialmente de Lila.
A sua relação com
Lila, que já vem dos volumes “A Amiga Genial” (Relógio d`Água) e “História do
Novo Nome” (Relógio d`Água), é complexa, com ódios e apreços, conforto e
traição. Ao contrário de Lenú, Lila ficou no bairro pobre de Nápoles, onde
casou e se divorciou. Lila mantém um emprego com condições mínimas numa fábrica
de enchidos, dirigida por um homem que assedia as empregadas. Os problemas
laborais da Nápoles dos anos 50 obrigam a grande capacidade de resistência. A
necessidade de trabalhar coincide com a necessidade de se humilhar. Elena é
popular; Lila é uma mulher que combate a precariedade laboral e económica. No
entanto, o ascendente de Lila sobre Elena é sistemático, duro e cruel.
Ferrante purga a
narrativa da visão masculina, implementada durante séculos, sobre a mulher. A
visão da autora é uma visão feminina, emancipada, transformando a mulher em
sujeito passivo e activo. Essa libertação, com os inevitáveis avanços e recuos,
é narrada nos quatro livros de Ferrante, que correspondem a este ciclo. A
agressividade está implícita nos actos e na utilização de uma linguagem que
exclui, mas que também serve para demonstrar afecto e pertença. O dialecto
napolitano é uma fronteira para quem é de fora.
A maternidade, a
sexualidade, o matrimónio – pilares da personalidade, são expostos e analisados
por Elena Greco:
“ Desejo ter filhos? Quero ser mãe, quero amamentar e
embalar? Casamento e gravidez? E se me sai da barriga a minha mãe, agora que já
me julgo em segurança?”
Lenú receia que as características
psicológicas da sua mãe se façam notar nela própria e na sua descendência. A
avaliação feita a Nino, por quem Lenú nutre uma paixão desde a adolescência, incide
também sobre estes aspectos. Nino, apesar de não querer admitir, é o espelho do
pai.
O casamento com
Pietro foi uma tentativa de eliminar a paixão por Nino. Lenú “não sentia
necessidade nenhuma da santidade do casamento”. Só queria sair de Nápoles e
esquecer Nino.
O sexo com Pietro,
seu marido, exemplifica a impossibilidade de partilha de satisfação. Não há
reciprocidade. O prazer masculino é mais importante do que satisfação feminina:
“Às vezes fazia com que ele me possuísse de costas,
tinha a impressão de sentir menos dor, e, enquanto me assestava os seus
impulsos violentos, agarrava-lhe uma mão e levava-a ao sexo, esperando que ele
percebesse que queria ser acariciada. Mas parecia ser incapaz de fazer as duas
coisas, e, como preferia a primeira, esquecia-se logo da segunda, da mesma
maneira que uma vez satisfeito, não parecia compreender que eu precisava de uma
parte do corpo dele para extinguir, por minha vez, o desejo”
Mãe, amante,
escritora, amiga. Mulher. Sobre todas as vertentes da sua personalidade, Lenú
debate-se com dúvidas. Mas lentamente começa a enfrentar os motivos da sua fuga.
As personagens de
Ferrante são construções com apreciável densidade. A envolvência social e
familiar permitem ao leitor entender profundamente as decisões tomadas. Mas não
nos enganemos. A leitura de um homem será diferente da leitura efectuada por
uma mulher. Por mais empatia que o homem sinta pela mulher, algumas preocupações
estão-lhe vedadas. Não é possível que ele venha a sentir a insegurança de uma
mulher por não poder amamentar
Lenú almeja libertar-se
de uma mãe egocêntrica e controladora, de uma cidade que separa os seus
habitantes em classes sociais, e de um paradigma essencialmente masculino.
Elena Ferrante
consegue dar uma visão diferente, “fresca”, sobre uma sociedade fechada, corrupta,
dominada pelo machismo. E não só. A relação entre Lenú e Lina é construída com
mestria. É difícil esquecer estas duas personagens.
“História de Quem
vai e de Quem Fica” é o terceiro livro de um ciclo de quatro que confirma Elena
Ferrante como uma escritora extraordinária.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=812516
Mário Rufino
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