Um homem descobre um inédito numa gaveta, em casa da
sua avó. É do seu falecido avô. A leitura desse original motiva-o a escrever a
sua história, sempre em diálogo com o conteúdo do livro encontrado.
Esse homem é Nuno Costa Santos (n.1974), autor de
“Melancómico”, “Vou Emigrar Para o Meu País” (Escritório), “Trabalhos e Paixões
de Fernando Assis Pacheco” (Tinta-da-China). Essa descoberta é a raiz do seu
primeiro romance: “Céu Nublado com Boas Abertas” (Quetzal)
Desde Lisboa aos Açores, o autor viaja para conhecer
melhor o seu avô, que é recordado como um homem doente, e para procurar a sua
própria identidade.
O humor britânico de Nuno Costa Santos chega a ser
corrosivo, principalmente com ele mesmo. Música, droga, literatura e paisagem
compõem uma versão dos Açores afastada do postal turístico.
O Diário Digital conversou com o autor nas Correntes
d` Escritas, Póvoa de Varzim.
O título é quase uma citação do boletim
meteorológico. Não será também uma preparação para um jogo de opostos que
existe no livro?
Este
título não fala só da meteorologia e do tempo instável que existe nos Açores.
Fala também – e talvez sobretudo - da vida. Há um céu nublado, ou seja, uma
tragédia essencial, porque na nossa caminhada temos muitas perdas e sabemos que
vamos morrer. Mas, dentro desse trilho frágil, há possibilidades, momentos,
relações, paisagens.
Reflecte bem o que foi a vida do meu avô, uma existência de céu nublado com boas abertas. Uma vida de doença desde os 27 anos. Teve de viajar de uma freguesia açoriana para o Caramulo, deixando para trás uma mulher com quem havia casado há pouco tempo. Ao sexto ano de internamento foi-lhe retirado um pulmão, o que é de uma violência tremenda. Apesar dessa infelicidade, não deixou de ter a felicidade de se tornar leitor, de ver filmes, teatro, de conviver com algumas pessoas. De receber a minha avó, que foi ter com ele ao fim de quatro anos de distância. O céu do Caramulo apresentou boas abertas e a vida que se seguiu também. Reergueu-se, teve três filhos, tornou-se gerente de um banco nos Açores.
Um dos momentos mais bonitos do livro é o facto de ele ter extirpado o pulmão para não contaminar a filha, minha mãe, que tinha acabado de nascer. Há um ponto importante:
esta é a minha visão sobre o livro do meu avô. Tenho um primo direito que foi a única pessoa, além de mim, a ler o original que o meu avô escreveu sobre a sua experiência enquanto doente no Caramulo, a partir do qual construo um diálogo literário. Ele tem uma visão diferente do meu avô enquanto pessoa. O meu primo vê o seu lado solar. Eu aqui apresento-o como um homem doente, acompanhado de uma garrafa de oxigénio, embora no fim da jornada também revele umas boas abertas. Porque, de facto, ele teve uma vida realizada e reconhecida... E dançou! Teve amigos, fazia graças. Mas depois voltou o céu nublado: o nervosismo e a tensão, outros problemas que trazia consigo.
Reflecte bem o que foi a vida do meu avô, uma existência de céu nublado com boas abertas. Uma vida de doença desde os 27 anos. Teve de viajar de uma freguesia açoriana para o Caramulo, deixando para trás uma mulher com quem havia casado há pouco tempo. Ao sexto ano de internamento foi-lhe retirado um pulmão, o que é de uma violência tremenda. Apesar dessa infelicidade, não deixou de ter a felicidade de se tornar leitor, de ver filmes, teatro, de conviver com algumas pessoas. De receber a minha avó, que foi ter com ele ao fim de quatro anos de distância. O céu do Caramulo apresentou boas abertas e a vida que se seguiu também. Reergueu-se, teve três filhos, tornou-se gerente de um banco nos Açores.
Um dos momentos mais bonitos do livro é o facto de ele ter extirpado o pulmão para não contaminar a filha, minha mãe, que tinha acabado de nascer. Há um ponto importante:
esta é a minha visão sobre o livro do meu avô. Tenho um primo direito que foi a única pessoa, além de mim, a ler o original que o meu avô escreveu sobre a sua experiência enquanto doente no Caramulo, a partir do qual construo um diálogo literário. Ele tem uma visão diferente do meu avô enquanto pessoa. O meu primo vê o seu lado solar. Eu aqui apresento-o como um homem doente, acompanhado de uma garrafa de oxigénio, embora no fim da jornada também revele umas boas abertas. Porque, de facto, ele teve uma vida realizada e reconhecida... E dançou! Teve amigos, fazia graças. Mas depois voltou o céu nublado: o nervosismo e a tensão, outros problemas que trazia consigo.
Não tinha o amparo da fé…
Essa
circunstância torna o meu avô uma pessoa-personagem particularmente
interessante. É excepcional uma pessoa dos anos 40 do século XX, num
arquipélago muito católico, não o ser. Ele nasceu numa freguesia rural, onde
havia o ritual dos pais irem a todas as missas. O meu avô descreve uma Missa do
Galo, questiona aquilo tudo e demonstra o quanto essa celebração lhe causa
enfado.
Há um segmento especialmente importante. Ele está a assistir à procissão do Senhor Santo Cristo dos Milagres e vê a minha avó e a minha bisavó (mãe dele) a cumprirem uma promessa por causa da doença. Está a ver aquilo tudo e a pensar que não acredita naquela prática religiosa.
Há também uma dimensão política. Ele começou a ficar muito impressionado com as injustiças sociais do meio em que nasceu e cresceu. A ilha de São Miguel ainda é uma sociedade bastante estratificada socialmente, mas na altura era muito mais. Ele não gostava do lado servil em relação aos senhores da terra. Daí veio o interesse pelos neo-realistas. Alves Redol foi fundamental. Ferreira de Castro é muito mencionado. Existem outros autores progressistas pelos quais se interessou. Pelo seu conterrâneo Antero de Quental, por exemplo, que se suicidou no mesmo Campo de São Francisco onde decorre a procissão do Senhor Santo Cristo dos Milagres. Era um autor de referência para o meu avô.
Céu nublado pode também ser a nuvem da tuberculose. É uma mancha.
Há um segmento especialmente importante. Ele está a assistir à procissão do Senhor Santo Cristo dos Milagres e vê a minha avó e a minha bisavó (mãe dele) a cumprirem uma promessa por causa da doença. Está a ver aquilo tudo e a pensar que não acredita naquela prática religiosa.
Há também uma dimensão política. Ele começou a ficar muito impressionado com as injustiças sociais do meio em que nasceu e cresceu. A ilha de São Miguel ainda é uma sociedade bastante estratificada socialmente, mas na altura era muito mais. Ele não gostava do lado servil em relação aos senhores da terra. Daí veio o interesse pelos neo-realistas. Alves Redol foi fundamental. Ferreira de Castro é muito mencionado. Existem outros autores progressistas pelos quais se interessou. Pelo seu conterrâneo Antero de Quental, por exemplo, que se suicidou no mesmo Campo de São Francisco onde decorre a procissão do Senhor Santo Cristo dos Milagres. Era um autor de referência para o meu avô.
Céu nublado pode também ser a nuvem da tuberculose. É uma mancha.
Em “Céu Nublado com Boas Abertas” traças o
teu trajecto nos Açores e, em simultâneo, o do teu avô. Quem é que procuras
conhecer?
É uma espécie de diálogo entre dois homens da mesma
família que não conviveram. O meu avô expõe-se muito no livro que escreveu
sobre a sua experiência enquanto doente – livro que encontrei na sua casa da
Estefânia quando cheguei a Lisboa, vindo dos Açores, para estudar Direito. Eu
não poderia fazer outra coisa neste meu projecto literário. Se eu tenho a
ousadia de expor algo que ele escreveu e não publicou, não posso estar com uma
postura distante, “de poltrona”. Podia ter tido esse gesto, mas não era isso
que me interessava. Gosto de me jogar nas coisas que escrevo e faço. Gosto
desse risco. Por vezes causa-me preocupações mas costumo avançar.
Reformulo a pergunta: Os teus livros são
uma forma de te conheceres e às tuas contingências?
Todos nós somos contingências. Um dos nossos grandes
problemas é julgarmos ser absolutos. Tento sempre sabotar o meu lado mais
solene justamente por estar sempre a ouvir-me dizer para me meter em causa e
contraditar-me. Resisto aos discursos sentenciosos, esses que em Portugal têm
muitos seguidores.
Sentiste pudor ao ponto de filtrar alguma
informação?
Filtrei pouca. Falei com a minha avó, que foi a pessoa
que sofreu mais com isto tudo. Tentei saber o que ela sentiria se eu revelasse
algumas coisas...
Filtraste mais da parte do teu avô do que
da tua?
Não consigo fazer um balanço rigoroso. Falo das minhas
contradições, do meu processo de crescimento, dos meus deslumbres, das minhas
ofensas. Ou seja, fui dialogando com o meu avô no que eu penso ter algumas
parecenças ou possibilidades de diálogo com ele. São dois homens a conversar
sobre a instabilidade do tempo que é isto de viver.
Com um livro como intermediário…
Sim. São dois homens da mesma família em que o
descendente tenta compreender o outro e tenta entender-se a si próprio através
de um documento que o ascendente deixou.
A tua avó já leu?
Já leu. Assim como a minha mãe e os meus tios.
Reviu-se no livro?
Sim... Este livro teve um poder de comoção grande na
minha família. Era algo que me preocupava. Recebi mensagens emocionadas. A
minha avó gostou muito de reviver os períodos solares. Ela é uma grande
resistente. Casou-se com o meu avô, mas seis meses depois este foi para o
Caramulo. Ficou sem marido, naquele ambiente fechado de freguesia em que se
perguntava “será que este homem não a enganou, escondendo a doença?”. Ela
acompanhou sempre a doença do meu avô, e quando o meu avô ficou mais nervoso,
com todas as suas alterações de humor, ela também esteve lá.
Não deixaste a ética de lado.
Não
deixei a ética de lado mas não sei se a respeitei sempre. Há um parêntese que é
preciso fazer. Isto é literatura. Carrego numa cor que pode ser mais
interessante narrativamente sem beliscar o essencial dos factos. O livro é a
minha interpretação literária.
A verdade que interessa é aquela que está
no livro e não propriamente a que é inerente à realidade?
Sim,
mas está sempre na fronteira. Não posso negar que este elemento real interessa-me
muito. Há sempre um lado de ilusionismo, de ficção, de artifício. Estamos a
assistir a um regresso artístico ao real – na literatura, na música, no cinema,
na televisão. Eu não me considero um seguidor desse movimento, mas um
praticante natural desse movimento. Quando li o livro-manifesto do David
Shields, “Reality Hunger”, pensei que era aquilo que eu sentia e que já tinha
intuído e até discutido com alguns amigos. Muitos trabalhos meus já têm isso:
esse ilusionismo entre o real e o imaginário. Esse fingimento de algo que
aconteceu. Há muita gente que julga que sou o melancómico.
A melancolia está presente no
“Melancómico”, em “Vou Emigrar para o Meu País” e em “Céu Nublado com Boas
Abertas”. É artifício ou é mesmo parte de ti?
Tenho
isso, de facto. É das minhas raras virtudes. Não há escrita sem melancolia. Há
aí muita gente que não a tem. Transplantaria apenas parte da minha melancolia
para alguém que fosse muito – mas mesmo muito - alegre. Estás a ver aquelas
pessoas muito contentes e às quais faz falta uma ponta de angústia? Eu iria a
uma clínica e dava-lhes um tudo nada de angústia [risos].
Parece-me que és menos “ácido” neste
livro. Em “A crítica aqui” e “Follow the leader”, duas crónicas de “Vou Emigrar
para o Meu País”, existe mais acidez.
Não
concordo muito com a afirmação. Mas, tentando falar com essa ideia, digo que a
crónica permite de modo muito claro esse registo. Quando escrevo uma crónica
ácida tenho tendência para me meter nessa acidez. Sou ácido comigo. Não gosto
de me excluir. Tenho de tirar o tapete a mim próprio.
Em “Vou Emigrar para o Meu País”
escreveste “Os portugueses? Estão a ver os portugueses? Tipo «nós»”...
Sim,
sim... Tento meter-me sempre na jogada. Em Portugal pratica-se muito um humor
“gil vicentino”: o de satirizar “os poderes”, sejam estes políticos, económicos
ou religiosos. Ora o poder também somos nós, cada um de nós. Reconheço-me mais
no humor irlandês e inglês. Eles têm uma mistura de humor com melancolia. Olham
para si e riem-se.
Na entrevista com Luís Caetano, em “A
Ronda da Noite”, disseste várias vezes que eras açoriano.
Este
livro também tenta resolver essas questões de identidade, que são reais e sérias.
O facto de eu ter chegado a São Miguel com sete anos (os meus pais estavam a
trabalhar em Lisboa quando nasci) e de ter sido chamado “português”... O facto
de não ter sotaque, apesar de ter muitas expressões micaelenses… Em pequeno a
minha reza diária terminava assim: “Deus,
faça com que não haja guerra nem tremores de terra.” É a reza de alguém que se fez
numa ilha muito bonita edificada à custa de vulcões e tremores de terra. Quando
rezo a reza de infância, estou a regressar ao berço. Os meus pais são açorianos
e cresci num ambiente totalmente açoriano. Depois vim para cá [continente]
estudar e por aqui fiquei.
O açoriano, quando fala com alguém, ao fim de três ou quatro minutos está a dizer que é açoriano. Há uma necessidade identitária.
Eu quero ser enterrado nos Açores. Penso que é um argumento decisivo. Seria absurdo ser enterrado em Lisboa. Não gosto particularmente de viver em Lisboa, talvez por causa da felicidade comunitária que tive nos Açores. Nunca experimentei aquele desejo cliché de sair da ilha e ir para “novos horizontes”.
O açoriano, quando fala com alguém, ao fim de três ou quatro minutos está a dizer que é açoriano. Há uma necessidade identitária.
Eu quero ser enterrado nos Açores. Penso que é um argumento decisivo. Seria absurdo ser enterrado em Lisboa. Não gosto particularmente de viver em Lisboa, talvez por causa da felicidade comunitária que tive nos Açores. Nunca experimentei aquele desejo cliché de sair da ilha e ir para “novos horizontes”.
Há muitas influências literárias e
musicais no teu livro…
Dialogo
com autores como Kafka, Vila-Matas, Camus, Paul Auster, um autor hoje um pouco
desprezado. Há também uma conversa impossível entre Beckett e influências
açorianas. E há muita música. De My Bloody Valentine a Paul Buchanan, dos Blue
Nile. Estou sempre a ouvir música. As músicas aqui incluídas não foram
escolhidas de uma lista. Foram aparecendo à medida que o livro foi acontecendo.
Por exemplo, “Wish You Were Here”, dos Pink Floyd, surge para caracterizar uma
geração anterior à minha – e inclui uma passagem que tem tudo a ver com o
espírito do livro: “blue skies from pain”. É uma geração que viveu os anos 80
nos Açores, em que se ouvia muito os primeiros álbuns dos U2, os Pink Floyd, os
Rolling Stones. Vários dessa geração estiveram envolvidos em drogas duras.
Os Açores foram fustigados pela droga?
Muito,
muito… Continuam a ser.
Em “Head on”, dos Jesus and Mary Chain, canta-se “I´m taking myself to the dirty part of town where all my troubles can´t be found”. É convocada para caracterizar uma zona de Ponta Delgada onde há droga, travestis, prostituição. Ocorreu-me no momento da escrita. Funciono muito assim. Há uma mistura entre apontamentos prévios, que depois vou organizando, com o que surge no momento.
Em “Head on”, dos Jesus and Mary Chain, canta-se “I´m taking myself to the dirty part of town where all my troubles can´t be found”. É convocada para caracterizar uma zona de Ponta Delgada onde há droga, travestis, prostituição. Ocorreu-me no momento da escrita. Funciono muito assim. Há uma mistura entre apontamentos prévios, que depois vou organizando, com o que surge no momento.
Na geração do teu avô dizia-se que era preciso aprender a ler e a escrever para se arranjar um ofício. Assim sendo… o que correu mal contigo?
[risos]
Toda a família tem de ter uma ovelha ranhosa. Se calhar sou a concretização
familiar de uma vocação literária de pessoas como o meu avô materno e o meu
bisavô paterno, que era poeta em Ponta Delgada. Um gerente bancário, que
escreveu um livro, e um contabilista, que escreveu pequenos livros de
poesia num círculo micaelense de amigos, em que cada um tinha a sua profissão e
se reunia no café Royal para discutir literatura e política. Há uma raiz. Venho
na sequência deles, com o sangue que eles transportavam, e faço uma opção mais
radical em ir só para a escrita.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=819320
Mário Rufino
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