Chegou do Brasil, Viu a Póvoa de Varzim, convenceu
nas Correntes d`Escritas. Tudo saiu bem a Julián Fuks. O livro, a intervenção
na Mesa e as entrevistas deixaram excelente imagem do autor de “A Resistência”
(Companhia das Letras)
Julián Fuks conjuga a amabilidade com a
inteligência. A clareza do seu discurso é ímpar tanto no texto literário como
na oralidade. O autor parece procurar constantemente a palavra mais próxima ao
que sente e ao que pensa. “A Resistência” reflecte essa demanda.
Sebastián, o narrador do livro, tenta reconstruir a
história da sua família a partir da origem: a Argentina. Os seus pais,
psicanalistas, foram obrigados a fugir da Argentina, devido à implementação de
uma ditadura militar. Corria o ano de 1976. No período de vigência dessa
ditadura, centenas de crianças desapareceram.
Em fuga da Argentina para o Brasil, onde Sebastián
viria a nascer, o casal leva uma criança entretanto adoptada.
Ao longo dos anos, as relações entre irmãos e entre
irmãos e pais vai-se complicando. E um mistério vai ganhando cada vez maior
importância: Quem é o filho adoptivo?
Será Sebastián a narrar, nesta pungente autoficção,
a evolução familiar desde a origem argentina até anos já passados de exílio no
Brasil.
O Diário Digital entrevistou o autor na 17ª edição
das Correntes d`Escritas, para saber mais sobre “A Resistência”
O silêncio após a primeira pergunta foi desconcertante,
mas logo se percebeu que esse momento era a antecâmara de uma resposta sucinta
e esclarecedora. Julián Fuks ponderou antes de responder a cada pergunta. E
cada resposta foi demonstrativa da inteligência do autor.
No teu livro, o irmão adoptivo diz isto na pág.
187:
“Sobre isso você devia escrever um dia, sobre
ser adotado, alguém precisa escrever”
“ A Resistência” foi a resposta a esse desafio?
-Houve esse desafio, feito há alguns anos como
resposta ao processo de terapia familiar por que estávamos passando, processo
que se narra no livro. Tanto ele quanto eu vivemos a situação muito
intensamente, e naquele momento eu não pensava que aquilo podia-se tornar
literatura. Simplesmente assimilei o comentário e não o esqueci. Ficou em mim.
Foram precisos muitos anos para que eu entendesse que devia escrever sobre
aquilo. Comecei então a escrever um conto sobre o meu irmão. E, ao me pôr a
escrever, percebi que a história tinha que crescer, que devia também contar a
história dos meus pais. Assim foi se configurando o romance.
Quando dizes “eu não sei bem se isto é uma
história”, tem a ver com artifício literário ou não sabias mesmo onde o
texto te levava?
-Esse comentário é feito ainda no começo do
livro. De facto, havia algo de imponderável nesse início. Ali eu contrariava,
inclusive, a minha prática de livros anteriores, pois abdicava de um
planejamento e ia escrevendo enquanto tentava encontrar o caminho. Depois de passar
por essa primeira parte, criei uma arquitectura para o livro. Mas a frase tem
também outra intenção. Traz uma oposição entre a História, a que se costuma
conceber com H maiúsculo, e a história menor, que é a pessoal e íntima. É nessa
relação entre histórias que eu resolvi escrever este livro. A história familiar
e íntima vai-se transformando lentamente numa História social e política.
Essa estrutura de que falaste é fragmentada. A
forma como contas a história tem a ver como construímos as nossas narrativas
através da memória?
Quando eu comecei a conceber o livro na
totalidade, percebi que só dispunha de fragmentos. Transformar isso numa
história completa e total ia ser uma maneira artificial de construir um enredo.
Como eu queria ficar o mais próximo possível daquela realidade específica que
eu tinha à disposição, a fragmentação me auxiliou a lidar mais directamente com
esses elementos da experiência e da memória. Permitiu-me também fazer um livro
mais de indagações do que de certezas. Em cada fragmento eu não chego a contar
um episódio completo. Por vezes conto uma pequena passagem, transitória,
que me leva a algumas reflexões que estou tentando apreender. Não era minha
vontade construir grandes cenas, passagens grandiloquentes.
O narrador está muitas vezes desconfiado da sua
própria memória. Procuraste tentar ser o mais honesto possível?
Em grande medida sim, a desconfiança era parte
dessa honestidade que eu pretendia no livro. Mas também partia do facto de que
não se trata só de uma memória pessoal; é também uma memória a partir da
memória de outros. É uma memória construída a partir de discursos sobre o
passado, não uma memória directa do passado. São elementos falíveis, que não
poderiam construir um passado monolítico.
Dois personagens viveram o passado da militância
contra a ditadura: o pai e a mãe. E eles não chegam a nenhuma versão comum. Eles
têm versões díspares. Esse é o tipo de disparidade que eu quis incorporar na
minha narrativa, para que não houvesse um discurso pronto sobre o passado, e
sim um discurso em construção.
Há uma parte do texto que está dotada de uma
tristeza extraordinária:
“(...) algum dia vocês se distraíram, vocês
continuaram a vida e me deixaram sozinho aqui”. Com este livro quiseste
compreender o teu irmão e aproximares-te dele?
Sim, essa era uma das finalidades da escrita,
para além da finalidade da literatura, em si mesma. Foi uma tentativa de
aproximação e de diálogo, num lugar em que o diálogo não se colocava muito
francamente. Apesar desses lampejos verbais, como nesse momento de muita
abertura do irmão para falar de certas coisas, a maior parte do tempo essa
relação fraternal se dá pela impossibilidade da palavra, pelo silêncio, pela
alusão pouco clara. O livro tinha a intenção de colocar palavras no lugar em
que havia só silêncio.
Testas os limites da própria linguagem? O narrador
chega a dizer “Não quero aprofundar sua cicatriz e, se não quero, não posso
dizer cicatriz”
O caso é que era preciso colocar palavras em
lugares em que muitas vezes as palavras são incómodas. Por muito o tempo a
família optou pelo silêncio, porque a palavra falada ou ouvida seria dolorosa.
Num mundo ideal, é claro, não se falaria de adopção. O filho adoptivo é um
filho, pura e simplesmente. Não seria preciso falar de um irmão ou de um filho
adoptivo. Não seria preciso discriminar. Neste outro mundo, no entanto, é
preciso encontrar palavras para lidar com essa questão, e essas palavras
provocam inevitavelmente algum desconforto. Eu sentia isso enquanto escrevia o
livro. Sabia que falar de adopção era falar de um assunto em que a própria
palavra tinha o poder de estigmatizar. Falar da adopção como cicatriz, como
nessa passagem, seria aumentar a importância que a adopção tinha ou poderia ter
na vida desse personagem. Este era o risco a ser evitado: que as palavras
perpetrassem a violência que se propunham a dissipar.
O narrador e o irmão adoptivo parecem optar por
estratégias opostas. Enquanto o narrador enfrenta os problemas, o irmão
adoptivo parece refugiar-se no silêncio.
É um livro de busca de identidade, mas feita por
quem talvez não devesse fazê-lo. É uma procura feita por uma figura substituta.
O irmão [adoptivo] poderia ir atrás das suas origens, indagar as circunstâncias
da adopção, se esta podia ter alguma relação com a ditadura militar e o
sequestro de bebés, muito frequente nessa época. Mas como esse irmão se
imobiliza e foge dessas questões, o irmão narrador faz a busca no lugar dele. Essa
busca é, inevitavelmente, limitada, por também ser uma busca própria e pessoal.
Esse narrador não chega a ir muito longe na procura, pois poderia acabar
incorrendo em uma invasão, em algo que não cabe a ele. Teria de ser o seu irmão
[adoptivo] a pesquisar as suas origens. Cada um tem o direito, afinal, de ir
atrás ou não ir atrás de seu próprio passado.
O irmão adoptivo teve psicanálise durante a
adolescência. Contou muito sobre ele próprio, mas nunca mencionou ser adoptado.
É o último tabu?
A consciência da adopção havia começado pela
palavra. Os pais transmitiram-lhe desde o início a informação de que ele era
filho adoptivo, só que aos poucos se dá um silenciamento e um afastamento dessa
realidade como se fosse mais confortável viver assim, no desconhecimento. Isso
cria um problema, pois a questão permanece ali mesmo que ele não queira lidar
com ela.
Toda essa passagem é muito forte para mim. Não
me refiro à passagem do livro, mas sim à passagem da vida, o
silenciamento do meu irmão, o facto de ter passado muito tempo em psicanálise
sem falar sobre esse assunto. O livro conduz a partir disso para a
terapia familiar, em que, depois de alguma insistência, o irmão aceita essa
questão e passa a falar directamente sobre isso.
O irmão adoptivo vai-se encontrando ou
desequilibrando?
Eu acredito que ele se vai encontrando, ainda
que pareça um desequilíbrio. Talvez seja um desequilíbrio necessário para um
equilíbrio posterior.
O livro “A resistência” é uma forma de resistir a
quê? Ao medo? Ao esquecimento?
A proposta é que o título permaneça em aberto.
Há muitas resistências sendo narradas aqui. Há a resistência dos pais à
ditadura militar, a resistência do irmão a conceber a sua própria adopção, a
resistência do irmão ao convívio familiar, a resistência do narrador a lidar
com essa questão e a falar sobre esse assunto. O que me atrai na ideia de resistência
é a ambivalência que o termo tem. Pode ser resistir positivamente, se colocar
firmemente contra uma opressão, ou pode ser também se recusar a falar, se recusar
a ver a verdade. A minha preocupação é captar o momento em que uma resistência
se converte em outra.
Mário Rufino
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