É possível encontrar felicidade
num livro? Sim, é possível. “O Sexo Inútil” (Sextante) pode contribuir para que
muitas pessoas se sintam inteiras, dignas e ajudadas. O livro de Ana Zanatti
(Lisboa, 1949) espelha as limitações de quem alimenta o preconceito, ilumina o
amor em detrimento do ódio, do hábito, da não-aceitação. Do medo.
A viagem que muitas mulheres e
muitos homens fizeram ou terão de fazer está registada em 517 páginas escritas
por uma autora que não fala só si, pois procura, essencialmente, ouvir os outros.
A coragem existe do primeiro ao último parágrafo. Pais, mães e filhos narram as
suas histórias e, ao fazê-lo, expõem os seus medos e as suas fraquezas. Mostram
o calvário e como o conseguiram ultrapassar.
. “O Sexo Inútil” é a
concretização de um projecto de 40 anos. Nos testemunhos reunidos, o leitor
percebe a agonia, a angústia e desespero de pessoas a quem a sociedade tenta
impor culpa. Percebe, também, que o Amor é a única via que existe para destruir
preconceitos e eliminar distâncias.
Ana Zanatti concedeu uma
entrevista ao Diário Digital no Festival Correntes d`Escritas, na Póvoa de
Varzim. Falámos sobre temas difíceis, pessoas marginalizadas e destruídas. No
fim, confirmou-se uma ideia:
“O Sexo Inútil” tem de ser lido. Não pode
passar despercebido.
Este livro ajuda à assunção plena
do ser humano.
“O
Sexo Inútil”. Inútil por que razão?
INÚTIL, é apenas uma ironia minha. Aos olhos de quem só legitima o acto
sexual que pode procriar, as práticas eróticas e o sexo que não procria
revestem-se de um carácter pecaminoso e de inutilidade. Na Antiguidade, e até
chegarmos ao monoteísmo judaico, cristão ou islâmico, o sexo não tinha essa
conotação negativa. Os códigos de Moral anteriores ao de Moisés não aliavam a
ideia de pecado ao sexo. Esse conceito nasce a partir da história em que, à
sombra da macieira, o primeiro homem e a primeira mulher comeram da árvore do
bem e do mal e perderam a inocência. A partir daí cai-nos em cima o estigma do
pecado e da culpa, do qual ainda não nos libertámos e que é muitas vezes
relacionado com o prazer. Quando o prazer, que supostamente acompanha o acto
sexual, se pode mascarar com a ideia da procriação, o sexo é legitimado, tem
uma utilidade. Ora, o acto sexual entre duas pessoas do mesmo sexo, como não
procria, deixa de ter essa desculpa, por isso marginaliza-se, não se legitima.
Mas não nos podemos esquecer que O amor, seja entre pessoas do mesmo sexo ou entre
sexos opostos, é sempre fértil.
Este
livro resulta de um projecto de 40 anos, embora tenha sofrido algumas
alterações com a entrada de Joana…
Reflectir sobre a liberdade e a dignidade feridas pelo preconceito e pela
discriminação era um projecto antigo. Juntei correspondência que recebi ao
longo de 40 anos com o intuito de um dia analisar questões colocadas por
centenas de pessoas. No processo de preparação do livro, ocorreu-me utilizar, a
par dos testemunhos que estava a recolher e da análise dessas cartas antigas,
excertos dos emails que troquei ao longo de um ano com essa jovem estudante, a
quem pus o nome de Joana. Ela veio pedir-me auxílio por estar a entrar em
depressão face ao medo de revelar aos pais, extremamente homofóbicos, a sua
orientação sexual.
Embora cada caso tenha as suas especificidades, e são muitos os
testemunhos que o livro tem, a travessia de Joana reflecte a de muita gente.
Parecem
movimentos antagónicos, ou seja o dela começa com início dessa travessia,
enquanto com os outros casos já funciona em retrospectiva.
- Exactamente. O caso de Joana serviu-me para encontrar o fio de uma
história que pode ser a de milhares de pessoas. É uma espécie de coluna
vertebral de milhares de casos.
No
livro escreveu “vivo estas pequenas vitórias como se fossem minhas.”. Houve um
fenómeno de projecção sua na condição de Joana?
Não pude deixar de comparar a minha própria história com a destes jovens
com quem falei e, particularmente, com a da Joana que acompanhei de perto. Daí
ter ido buscar excertos dos meus diários de há quarenta anos. É que passados
quarenta anos, depois de tanto se ter caminhado e discutido, de tantas leis que
já foram actualizadas, o drama vivido interiormente continua a ser muito
semelhante, numa enorme quantidade de jovens e famílias.
Parece haver mais liberdade agora…
Felizmente. Mal de nós! Mas a
verdade é que, ao contrário do que a maior parte das pessoas possa pensar, o
preconceito está muito enraizado nas pessoas e faz-se sentir de forma a
perturbar gravemente a auto estima, a vida, e a saúde de muitos jovens.
Não teve receio de se estar a meter
em problemas com o apoio a Joana?
Refiro isso no livro. A minha maior
preocupação era que com pais tão preconceituosos, se soubessem que ela tinha
vindo pedir auxílio, como poderiam reagir… Antes de tudo era importante que ela
tomasse consciência de si mesma, da sua orientação sexual e que a acolhesse sem
culpas porque dúvidas, todos podemos ter. Sempre tentei que ela se
responsabilizasse pela pessoa que é e pelos seus actos, como todos devemos
fazer. Agir com consciência e responsabilização. Faz parte do nosso crescimento
como pessoas.
Na sociedade há vantagem do “Mim”
(o que os outros pensam de mim) sobre o “Eu” (o que eu penso de mim)?
Desde crianças que procuramos agradar,
ser bem olhados, bem recebidos, acarinhados e admirados. A nossa construção
interna depende frequentemente da apreciação e validação das outras pessoas. Os
miúdos não gostam de serem diferentes uns dos outros, para não serem olhados de
forma diferente.
É como se a nossa identidade
precisasse da confirmação alheia para se fortalecer. Ora isso só nos conduz a
uma maior fragilidade, passamos a ser árvores sem raiz, que ao mais pequeno
sopro de vento caem por terra, tombam. É fundamental que a nossa estrutura
interna, o tronco da árvore e as suas raízes sejam fortalecidos. A pessoa que
somos não deve ser abalada por aquilo que pensam de nós.
Os olhares são diversos. Cada pessoa
constrói a sua versão de nós. Se estamos constantemente à espera da aprovação
dos outros para sermos a pessoa que somos, não seremos ninguém. Seremos um
fantoche nas mãos de outras pessoas, ou aquilo que os outros acham bem que
sejamos.
Há casos dramáticos de
não-aceitação da sexualidade….
Por isso falei com tantas pessoas. Pessoas que
por medo de não agradar, de decepcionar, de serem mal vistas por algo que faz
parte da sua natureza e que não interfere com a liberdade de ninguém, tentaram
fugir à sua própria essência. Ao ouvirem desde miúdos comentários negativos em
relação às pessoas com orientações sexuais não normativas, acabam por se pôr em
causa. Percebem que representam aquilo que é criticado e temem represálias,
discriminações de toda a ordem. Depois há também os pais que não estão
preparados para abraçar com amor os filhos, independentemente da sua orientação
sexual, e atiram com uma carga enorme para cima deles. É como se de repente
chegasse um ser novo àquela casa e a família lhe virasse as costas.
Os pais estão prontos para receber
uma ideia…
Sim, uma ideia que fizeram do filho,
uma ideia consensual que toda gente aprova e que é bem vista. Também os pais
querem que os filhos correspondam àquilo que é considerado normal, para eles
próprios não serem pais de um homossexual ou transexual. Alguns sentem vergonha
e têm medo do olhar dos outros.
Ultrapassar as próprias limitações…
Exactamente. É curioso. Um dos pais
com quem falei tinha imensos preconceitos. Quando conversámos, ele disse-me “eu
tinha duas coisas na vida que para mim eram claras: “homossexuais e pretos,
dava cabo deles”. A minha filha vive com um preto. O meu filho é homossexual.
Veja a volta que eu tive de dar na minha vida, no meu olhar sobre estas
questões para aprender a lidar com elas sem preconceito.”
O Ser Humano já pisou a lua, enviou
máquinas para Marte, criou armamento que pode destruir a Humanidade, mas não
consegue destruir o preconceito. Como é que se destrói uma ideia feita?
Penso que só através da via do amor,
do respeito pela liberdade do outro, pela inclusão. O amor dissolve tudo.
Uma provocação: é pela via da
tolerância?
A tolerância nada tem a ver com
amor. Pressupõe superioridade de alguém em relação à pessoa que se tolera.
É algo diferente…
São termos muito usados: “Tem de
haver mais aceitação. Tem de haver mais tolerância”. Cito, logo no início do
livro, Saramago e Agostinho da Silva, dado que ambos se pronunciaram sobre
esses dois termos. Agostinho da Silva detestava a palavra tolerância. Dizia que
dava a ideia de desdém. Saramago dizia que tolerar a existência de outro e permitir
que ele seja diferente não basta. Quando se tolera apenas se concede. Não é uma
relação de igualdade. Eu estou em cima, tu estás em baixo. Eu concedo que sejas
assim.
A palavra dignidade é recorrente no
livro.
A ideia que presidiu a este livro
foi falar de que forma o preconceito e toda a discriminação que vem do
preconceito atenta contra a dignidade de cada um. E também contra a liberdade.
Mas também cabe a cada um de nós não
permitir que a nossa dignidade seja beliscada. Não é por alguém atentar contra
a minha dignidade que eu a vou perder. Isso pode ferir-me mas não vou
renegar-me, encolher-me, deixar de ser quem sou, fiel aos meus princípios e
ideais.
Há,
também, um conceito sempre inerente: o de culpa. A dignidade depende da
eliminação da culpa?
Também. Uma coisa é a pessoa admitir
que cometeu um erro grave – se feriu, enganou ou matou alguém, por exemplo-
outra coisa é sentir-se culpa por ser quem se é, quando o seu ser em nada
implica com a liberdade dos outros. Não prejudicando ninguém está a admitir uma
falsa culpa e a negar-se a si próprio:
“Por que me olham de forma negativa,
eu não vou ser a pessoa que sou. Vou ser o que eles querem porque me sinto
culpado de algo que não fiz. E sinto-me assim porque não correspondo ao que é
suposto. O meu pai e a minha mãe têm vergonha de mim. A culpa é minha. Onde é
que eu errei? Por que é que não sou como os outros? Se eu fosse como os outros,
eles já não sentiam vergonha de mim.”
Não só os pais estão a atentar
contra a dignidade do filho, como o filho está a permitir que a sua dignidade
seja atirada para a lama.
Tem uma relação “resolvida” com a
religião? Notei algum sarcasmo no seu livro. Na pág. 63, um dos jovens que dá
testemunho, intitula-se de “papa-hóstias”
Sim, trata-se de um jovem nascido e
criado no Alentejo, num meio bastante fechado e católico… Eu também tive uma
educação católica. Não posso dizer que sou católica, mas no livro falo da minha
relação com o divino, a minha relação com Deus. Não estou propriamente ligada a
qualquer religião. Tenho a minha própria crença e a minha própria relação com
aquilo que me é sagrado. É mais uma filosofia de amor do que uma religião.
No livro afirmou que “o
cristianismo deu de beber veneno a Eros”...
É uma frase do Nietzsche. As práticas
eróticas estão muito relacionadas com a culpa, com a ideia de pecado, de
interdição, talvez por não terem como finalidade a procriação, como disse há
pouco.
Vi uma entrevista com Stephen Fry,
em que ele afirma que sendo homossexual, judeu e bipolar, o sucesso em
Hollywood estava garantido. E se fosse uma mulher, interroguei-me. Em relação
ao género, sentiu isso ao longo da sua vida?
Há menos mulheres [do que homens] com
profissões públicas capazes de dar um passo e dizer “aqui estou eu e por
inteiro”. Em Portugal, nem sei se há casos de mulheres [com profissões
públicas] que o tenham vindo dizer publicamente. Há alguns homens, sobretudo
ligados à cultura e ao meio artístico mas políticos, desportistas, devem ser
raros se é que há algum. Há ainda uma cultura de medo, de vergonha, de medo do
que os outros pensam muito forte e castrador. E no caso das mulheres é uma
questão cultural. As mulheres sempre foram levadas a esconder a sua sexualidade,
que, aliás, foi durante muito tempo vista em função do homem. Para dar prazer
ao homem, é como se uma relação onde não haja falo não possa ser uma relação
sexual inteira. Daí que também, durante muito tempo, a homossexualidade
feminina quase nem fosse levada a sério enquanto a dos homens tinha outra
expressão. Os homens sempre gostaram de exibir, de falar uns com uns outros. O
sexo para as mulheres foi algo muito escondido, muito vivido só para elas.
Mesmo na heterossexualidade.
Os capítulos de “Sexo Inútil” têm
títulos de filmes…
Sim, a determinada altura, quando já
tinha o livro quase pronto, pensei na forma de dividir os capítulos. Ocorreu-me
dar títulos de filmes em vez de números ou letras ou nomes. A escolha tem
exclusivamente a ver com o que sugere o título e não com o conteúdo do filme em
si. É apenas uma sugestão do que se vai passar naquele capítulo. Podia ter
posto nomes de peças de teatro, tanto uma coisa como outra teriam a ver com a
esfera em que me movo, mas talvez isso não tivesse uma identificação tão grande
para a maioria das pessoas.
Mário Rufino
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