Todos os dias são bons para roubar
Teju Cole (n.Brooklyn, EUA) cativa o leitor a cada
livro que escreve. “Todos os dias são bons para roubar” (Quetzal) é composto
por 27 textos sobre a estadia do autor no país onde cresceu: a Nigéria.
Teju Cole volta à cidade onde passou a sua infância
e de onde vieram os seus pais. Depois de muitos anos de ausência, o escritor
percebe que é uma pessoa diferente daquela que saiu de Lagos. A miscigenação
entre cultura africana, norte-americana e europeia formou um homem cosmopolita
e pleno de contradições. Os seus pais nasceram na Nigéria, mas Cole nasceu nos
EUA. Viajou de imediato para a Nigéria, onde esteve até aos 17 anos. E foi com
essa idade que voltou ao país natal para estudar. Depois de desistir do curso de
medicina, Teju Cole foi para Inglaterra com o objectivo de estudar História de
Arte Africana na “School of Oriental and African Studies”. Voltou aos EUA para se
doutorar em História de Arte, na Universidade de Colômbia. Depois de muitos
anos sem ir à Nigéria, ele volta para recuperar tanto quanto possível o seu
passado. E então percebe que é um homem “desenraizado”:
“ A palavra «pátria» poisa na minha boca como
comida estrangeira. Uma palavra tão simples e ao mesmo tempo tão difícil de
definir”
As reminiscências surgem na sua viagem por entre os
pontos cardeais de Lagos. O escritor norte-americano divaga pelas ruas desta
fervilhante cidade tal qual o fez em Nova Iorque e Bruxelas, quando escreveu
“Cidade Aberta” (Quetzal). “Todos os dias são bons para roubar” surge como
continuação dessa digressão por entre pessoas e locais de uma grande metrópole.
A sua infância vai surgindo nas sombras das ruelas
mais recônditas, nos gestos dos velhos, nos rituais de uma sociedade
economicamente assimétrica. No traço está a vontade em dar a conhecer a
história do país, entender o pensamento do homem nigeriano, com toda a
violência ora latente ora ostensiva, e até a própria arquitectura, como
expressão cultural e formadora do olhar.
Teju Cole sente que pertence integralmente a lado
nenhum. A viagem não é somente na cartografia de Lagos; é também dentro de si,
na procura de se conhecer melhor, de diagnosticar as origens dos seus traços de
personalidade.
“Tudo nesta
cidade que me é, ao mesmo tempo, estranha e familiar, está pejado de histórias,
o que me fez pensar na vida como uma sucessão de histórias.”
A prosa ganha mais força conforme vai sendo mais
próxima das questões pessoais. Cole não se inibe de mostrar as suas
incoerências ao longo da viagem. Tanto afirma ser-lhe impossível voltar a viver
em Lagos, por prezar a tranquilidade em detrimento de captar “um milhão de histórias ainda por contar”,
como, de imediato, afirma ser imperioso ter de voltar a viver naquela cidade,
que corrompe e é corrompida.
A corrupção está plenamente integrada nos hábitos
sociais. Os episódios contados são hilariantes. A corrupção espalha os
tentáculos em várias camadas sociais, gerações e profissões; vai desde os
jovens que se dedicam a tentar enganar internautas (é possível que o leitor já
tenha recebido emails a oferecer empréstimos, ou a solicitar transferência via
Western Union para um amigo em dificuldades), passando pelos polícias com
territórios delimitados para sacar subornos aos automobilistas, até às cúpulas
políticas e religiosas.
A perspectiva do escritor incide tanto no individuo
como no colectivo. As suas ideias são formadas pelos gestos, pelas vozes e pela
(des) organização dessa pungente Lagos.
Ele vê nas pessoas os pormenores que tanto lhe
agradam na literatura de Gabriel Garcia Márquez. Tanto assim é que fica com
pena dos escritores americanos que escrevem sobre melancólicos subúrbios, distanciamentos
afectivos e rupturas conjugais:
“Tivesse John
Updike nascido africano e teria recebido o Prémio Nobel há mais de vinte anos”
Sem surpresa, a literatura serve para descodificar a realidade. Autores como
Ondaatje, Swift, Gabo são recordados em “Todos os dias são bons para roubar”. É
também através da literatura que Cole tenta entender “ um ambiente hostil para a vida do pensamento” devido aos poucos
hábitos de leitura da população.
Em Lagos, as cores, os sons e os cheiros são agudos.
A tristeza é afastada com o incessante movimento da urbe. O silêncio é uma
anomalia. O barulho dos geradores a “diesel”, durante a noite, o calor e o
frenesi da cidade não deixaram o autor ler nem escrever. Daquela realidade vem
a arte e a impossibilidade de a criar. Para colmatar essa impossibilidade, o
autor dedicou-se a uma outra paixão, que o leitor pode constatar neste livro: a
fotografia de rua. Os instantâneos tirados complementam a prosa. São, no
entanto, dispensáveis. Não por causa da fraca qualidade, mas antes pela riqueza
da prosa, capaz de captar o rebuliço desta caótica e ambivalente cidade.
“De cada vez
que eu, ao regressar a Lagos, fico com a sensação de ter caído em algo parecido
com o inferno, há qualquer coisa que me volta a dar esperança- Alguém que lê um
livro, uma orquestra, a amizade de alguns que persistem em remar contra a
maré.”
Teju Cole é um extraordinário contador de
histórias. A sua capacidade em conciliar os ambientes com a psicologia das
personagens adjectiva-o como um hábil narrador.
“Todos os dias são bons para roubar” é um digno
sucessor desse grande romance intitulado “Cidade Aberta”.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=804099
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