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“O Sol dos Mortos” (Relógio d`Água), de Ivan Chmeliov




A voz do desespero

Ivan Chmeliov (Moscovo, 1873-1950) profetizou, com “, o que viria a suceder, anos mais tarde, na Rússia e nos vários países que seguiram os mesmos ideais revolucionários. O autor moscovita juntou a sua voz à voz de autores como Búnin, Isaac Bábel e Vassili Grossman na denúncia dos horrores praticados por uma ideia (e Estado) totalitária.
Os ideais comunistas aplicados após a vitória bolchevique na Guerra Civil Russa espalharam a fome no território. A Crimeia, região onde Chmeliov esteve durante o período de Guerra Civil, ficou sem 100 mil pessoas. Não havia classe média nem clima ameno. Devido à política, através do socialismo, ou ao clima, com sol tórrido no Verão e chuva e neve no Inverno, a população da Crimeia diminuiu. A agricultura de subsistência, prejudicada pelas adversas condições climatéricas, acrescentou ainda mais miséria. Morria-se de fome ou por fuzilamento. Entre 1921 e 1923, os habitantes desta península na costa norte do Mar Negro diminuíram, segundo os tradutores Nina Guerra e Filipe Guerra, 15%.
A Guerra Civil Russa, que começou em 1918, opôs o Exército Vermelho (ou bolchevique), composto por camponeses e operários, ao Exército Branco, composto por soldados. A vitória do Exército Vermelho, criado por Trotsky e Lenine, aconteceu em 1921, três anos depois do início da guerra.
O único filho de Chmeliov, pertencente ao Exército Branco, foi preso e fuzilado em 1920.
Em “O Sol dos Mortos” (Relógio d`água) conta-se o horror provocado pela implementação desses ideais dos bolcheviques (comunistas russos)
“Cheguei a fazer as contas: apenas na Crimeia, durante três escassos meses, oito mil carruagens, nove mil carruagens de carne humana fuzilada sem julgamento, sem julgamento! Cerca de trezentos comboios! Dez mil toneladas de carne humana fresca, carne jovem! Cento e vinte mil cabeças! Hu-ma-nas! Tenho também, cálculos de sangue, por almudes…”
Escrito em 1923, pouco tempo depois de o autor sair da Crimeia, “O Sol dos Mortos” é um doloroso retrato de um povo que vive sob a miséria, pois nada tem para comer. As galinhas estão fracas e não dão ovos; a vaca magra e esquálida quase não dá leite. Os vizinhos roubam os animais uns aos outros, e os animais, esfomeados, atacam as poucas e secas hortas. Algumas pessoas comem gatos e cães:
“Ora bem, aqui roubam sal, encostam as pessoas às paredes, apanham gatos com armadilhas, atiram os humanos para as caves e fuzilam-nos, rodearam as casas com arame farpado e criaram «matadores humanos!»
Outras são obrigadas a praticar canibalismo para sobreviver
"Em Bakhtchissarai um tártaro salgou e comeu a sua mulher"
O comunismo aplicou a pobreza como denominador comum. A liberdade foi decepada na hipotética defesa de um ideal. Tudo era excedente e, como tal, olhado como vício burguês a ser extirpado.
O sol não refulge para todos. O sol luz, doente, para os moribundos.
Apesar de o epílogo anunciar a Primavera, parece que tudo recomeça. O fim confunde-se com o início.
Ivan Chmeliov escreveu uma sarcástica antiutopia sobre a “grande experiência” social e política (observada pelos países estrangeiros) acerca da Rússia.
O testemunho do autor moscovita é um testemunho colectivo. A população da Crimeia encontrou na voz de Chmeliov o seu grito, o seu lamento devido à extrema degradação em que vivia. O fluxo de consciência do narrador impõe um ritmo frenético, por vezes incoerente, e demonstrativo da loucura imposta pelas circunstâncias. O narrador transmite ao leitor a ideia de que, no dia seguinte, pode não estar vivo para passar o testemunho daquela agonia. Chmeliov afasta a metáfora e faz da linguagem um cru e pungente reflexo realista. Não há eufemismos nem fugas ao horror.
Sobre a importância actual de “Sol dos Mortos”, recuperemos as palavras de Aleksandr Soljenítsin:
“É preciso ler e reler este livro para reavivar o sentimento do Ocorrido, para consciencializar a sua dimensão”
Um livro pungente e demonstrativo do que acontece quando o homem é lobo do homem.


Mário Rufino

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=798693

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2 Comentários

Carlos Faria disse…
Fiquei curioso, embora na dúvida se era uma espécie de crónica ou um romance, parece-se que embora retrate uma realidade, estamos perante uma obra de ficção. Anotei para ler. Votos de Feliz 2016 e com boas leituras, continuo a acompanhar com atenção as suas recensões.
Mário Rufino disse…
Tem o tom da crónica e a estrutura do romance. O romance é um género muito flexível.
Obrigado pelas leituras, Carlos

Bom ano.