«Inferno»: uma via rápida e vertiginosa para a psique de August Strindberg
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August Strindberg (n.Estocolmo, 1849-1912) escreveu “Inferno” (Sistema Solar) entre 1896 e 1897. Era já um autor consagrado, muitas vezes comparado a Shakespeare, devido à qualidade da sua dramaturgia. As peças “The father” (1887), “Miss Julie” (1888) granjearam-lhe o sucesso e a fama. Mas isso não o satisfez.
A obsessão de Strindberg pela química viria marcar a sua vida. O comportamento obsessivo provocou o falhanço matrimonial e ciclos de pobreza. “Inferno” é a visão deste homem que afirma: “desprezo a terra, este mundo imundo, os homens e as suas obras”. Esta obra foi escrita na sua “Crise do Inferno”.
Nesta fase, o autor divorcia-se pela segunda vez, começa a sofrer de alucinações e a ficar obcecado com perseguições irreais. Em 1897, ano da publicação de “Inferno”, Strindberg encontrava-se no exílio motivado pela publicação de “The Red Room” (1879) e “The New Kingdom” (1882).
É inviável separar a vida da obra do autor. Uma está ligada à outra. No entanto, a avaliação da produção literária, no que respeita ao biografismo, deve ser efectuada com cautela. Apesar de ter afirmado na sua autobiografia “The son of a servant” que provinha de uma família pobre e que a sua mãe era uma fanática religiosa, tudo em “Inferno” deve estar sujeito a escrutínio. O leitor deve duvidar. A obra onde o autor sueco mais utiliza real matéria-prima é uma complexa miscigenação de movimentos literários e, principalmente, de géneros narrativos. "Inferno" é autobiografia, mas também ficção, diarística e dramaturgia. A prosa de Strindberg oscila entre as mais detalhadas descrições, próprias do realismo/naturalismo, como do vórtice surrealista (a borboleta-caveira é uma bela metáfora da condição do Homem), quando se afunda na psicose. Há, obviamente, uma raiz: Obsessão.
Strindberg é um homem obcecado pela alquimia. Segundo George B. Kauffman, em “August Strindberg, Goldmaker”, Harriet Bosse, terceira esposa de Strindberg, afirmou que o autor tinha mais orgulho nos resultados das suas experiências científicas do que na sua obra literária. Ainda segundo Kauffman, o autor falhou as tentativas, mas conseguiu enriquecer a literatura com as amadoras experiências científicas.
Em “Inferno”, Strindberg - sob clara influência de Dante - afirma: “Cheguei a meio do caminho da vida, e sento-me para descansar e reflectir.”
A reflexão é dominada pelos seus demónios. A relação do autor com a religião é de tormento e de constantes afastamentos e aproximações.
“Insólito círculo vicioso que aos vinte previ quando escrevia Mestre Olof, o drama que se transformou na tragédia da minha vida. Terá realmente sentido eu arrastar-me por trinta anos de uma vida penosa, e ser a experiência a dar-me aquilo que já tinha previsto? Durante a mocidade fui devoto sincero, e fizeste de mim um livre-pensador; do livre-pensador fizeste um ateu, e do ateu um religioso.”
Os ataques de fúria, quando os céus não lhe dão o pretendido, e de submissão, quando ele implora por algo, são constantes. O autor sueco deambula entre opostos. Ora se pensa como escolhido ora como desprezado pelas “Potências”. Há um sintoma que se mantém regular: o asco pelo ser humano: “desprezo a terra, este mundo imundo, os homens e as suas obras. Considero-me o ser justo e sem iniquidade que o Eterno pôs à prova e a quem o purgatório deste mundo fará digno de uma próxima libertação”.
O pensamento de Strindberg está muito ligado ao violento Antigo Testamento. Em consequência, ele suplica que Javé castigue os injustos.
A “sujidade da vida” impregna-se nos nervos do autor sueco; os ruídos do frenesi da sociedade estilhaçam-lhe a tranquilidade. Strindberg tem uma saúde muito precária: sofre de insónias, alucinações visuais e auditivas; fica cada vez mais alienado até se ver obrigado a um internamento. Ele é o seu próprio inimigo, apesar de pensar que tudo e todos se reúnem, em conspirações humanas e cósmicas, para o prejudicar e retirar-lhe a glória devida. E mais furioso deve ter ficado quando Selma Lagerlof ganhou o Prémio Nobel da Literatura que ele pensava estar-lhe destinado. Selma Lagerlof foi a primeira mulher a ganhar o Prémio Nobel, o que deve ter aumentado o desgosto de August Strindberg. A postura do autor de “Inferno” contra o feminismo fez com que angariasse muitos inimigos e aumentasse a sua autocomiseração. Não nos enganemos: “Inferno” tem momentos de profunda misoginia. Em tempos de autopiedade, Strindberg lembra-se do conforto do lar, da companhia de uma mulher. Mas quando a sua vida passa por um momento de euforia, logo ele se esquece e despreza tudo o que o fazia sofrer de saudades: “Solitário na cama que cheira a mulher, sinto-me feliz: uma sensação de alma pura, de virgindade masculina faz-me ver o passado conjugal como qualquer coisa pouco limpa"
A obra editada pela Sistema Solar é enriquecida, como é hábito, por mais uma admirável introdução. O texto de Aníbal Fernandes (também tradutor) fornece informação valiosa para o leitor pouco conhecedor da obra de August Strinberg, autor com tanto de brilhante como de patético.
“Inferno”, via rápida e vertiginosa para a psique de August Strindberg, é um brilhante exemplo literário.
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