Carla Maia de Almeida:
«Precisamos de reconhecer novos modelos de família»
Por Mário Rufino
Carla Maia de Almeida (n.1969) concilia o conhecimento académico com a imaginação de criança. Licenciada em Comunicação Social e pós-graduada em Livro Infantil, a autora nascida em Matosinhos tem nove livros publicados. Desde «O Gato e a Rainha Só» (Caminho, 2005), primeiro livro, até ao mais recente «Ana de Castro Osório - A Mulher que Votou na Literatura» (Pato Lógico/INCM, 2015), a autora viu seis obras serem recomendadas pelo Plano Nacional de Leitura. Em 2013, publicou a obra mais marcante na sua carreira: “Irmão Lobo” (Planeta Tangerina), um dos livros do ano para o Diário Digital.
“Irmão Lobo” é um “salto quântico” devido ao estilo, à forma e ao público a que se destina. A história de Bolota demonstra a capacidade romanesca da autora. Carla Maia de Almeida tem em “Irmão Lobo” um livro pleno de amargura, contruído com ilusória simplicidade e capaz de cativar vários públicos. Não é um livro infanto-juvenil; é um livro contado por uma menina para ser lido por gente mais e menos adulta.
Já este ano, “Amores de Família” viria a marcar o regresso da escritora aos livros infantis e a romper com a negrura de “Irmão Lobo”.
“Amores de Família”, lançado na Feira do Livro de Lisboa, tem em si as diversas conjugações do amor. O leitor está perante um livro arriscado e provocante. Sem abdicar do carácter lúdico dos livros infantis, a escritora apresenta novas formas de educar e de, principalmente, amar. Em “Amores de Família”, a criança é dada a conhecer no contexto de plurais organizações familiares. Essas famílias são constituídas por casais do mesmo sexo, por casais multirraciais, por avós, ou por pessoas anteriormente divorciadas.
O Vale do Silêncio, no Parque Urbano dos Olivais, foi o local onde o Diário Digital entrevistou Carla Maia de Almeida. Um dia bonito, ameno, onde se falou da escrita para crianças, dos artigos sobre Literatura Infantil que a autora escreve no blogue e na Revista Ler, e, principalmente, desse “livro solar”: “Amores de Família”.
Segundo li no teu blogue [O Jardim Assombrado], a ideia de escrever Amores de Família surgiu quando estavas a ler As Deusas em cada Mulher, de Jean Shinoda Bolen.
A reler. É um livro a que regresso várias vezes. Reli umas partes e pousei-o. A ideia surgiu logo a seguir e fui agarrada por ela: «Então e se fizesses um livro sobre famílias que pegasse nas histórias e nos arquétipos psicológicos dos deuses gregos?»
Aquele momento em que estás a reler reuniu várias ideias que tinhas, ou surgiu mesmo do livro?
Foi uma sensação integrada. Com o Irmão Lobo aconteceu o mesmo e com o Não Quero Usar Óculos também. É a mistura de uma sensação física e de algo que na minha cabeça faz ligações. Creio que é o meu processo criativo: uma intuição que para ficar plasmada é normalmente acompanhada por uma sensação física. Para mim, a escrita implica muita fisicalidade. Não é só um processo mental. Longe disso... A imagem mais próxima do que é ter uma ideia é a seguinte: imagina quando tu vais a andar e, de repente, escorregas, sentes o corpo como que a desconjuntar-se, mas depois volta-se a agregar todo. É como uma vertigem, um choque…
Jean Shinoda Bolen junta espiritualidade e psicologia.
Sim, a espiritualidade no sentido da vivência de um mundo interior. E junta também psicologia, psicanálise, etnologia, literatura e mitologia. É um clássico como as Mulheres que Correm com os Lobos, da Clarissa Pinkola Estés, que é um dos meus livros de cabeceira. Talvez seja mesmo «o» livro, a bíblia. É um clássico da psicologia junguiana que reúne várias disciplinas à volta da análise de alguns contos de fadas e contos de raiz étnica.
A ideia dos deuses como arquétipos, presente em Amores de Família, tem a sua génese com esse livro?
Tem, mas posso dizer que um dos livros da minha infância foi O Livro de Ouro da Mitologia, do Thomas Bulfinch. São histórias, e não ensaios, da mitologia grega. Foi um dos meus livros formativos. É mágico. Lembro-me de quando o meu pai me deu esse livro, que era dele, e que depois passou para a minha irmã mais nova.
São uma espécie de nome colectivo da consciência humana, ou uma projeção de algo divino?
Sempre tive a noção de que aqueles deuses e deusas eram histórias inventadas pelos homens. Nunca olhei para as histórias do livro como se tivessem existido mesmo. Mas o que é o divino? Há um divino em nós. O ato criativo é um ato demiúrgico. Qualquer artista tem o impulso de chegar a algo transcendente, algo que ultrapassa a materialidade banal das coisas e que ascende a uma visão mais ampla e poética da normalidade.
Em Amores de Família baseaste-te nos arquétipos. Pegaste num deus e a partir dele…
Sim, baseei-me nas análises de cada deus e deusa da Jean Shinoda Bolen e depois tratou-se de passar as minhas ideias sobre aquilo para a realidade atual. Essa é a originalidade do Amores de Família. Compus as famílias seguindo alguma lógica: Marte e Vénus são óbvios; o casal masculino formado por Apolo e Vulcano é também um arquétipo muito comum. Vulcano é o que trabalha numa oficina, Apolo traz ordem e harmonia à matéria. Um exemplo dessa ligação arquetípica foi entre Robert Mapplethorpe e o seu último companheiro e mentor, Sam Wagstaff. O que eu quis sempre pôr em evidência, no Amores, foi a ligação entre o casal. Na crítica que fez para a Blimunda, a Andreia Brites reparou nisso. Ela notou também que as crianças não ocupam um lugar predominante no livro, tal como já tinha acontecido no Onde Moram as Casas, em que as casas são as personagens. Eu quero fazer sempre livros diferentes dos anteriores. Não me interessa repetir-me, nem seguir uma fórmula.
Irmão Lobo era na perspectiva de uma criança que depois se torna adolescente.
Todos os meus livros são diferentes, não deixando de haver uma coerência. É óbvio que há um antes e um depois do Irmão Lobo, que marca um “salto quântico” para um outro tipo de escrita que quero prosseguir. Já o meu primeiro livro, O gato e a Rainha Só, é um conto maravilhoso, na linha do Oscar Wilde, de viagens, de identidade e de família. Há tópicos que estão presentes em todos os livros. A família é um deles.
Amores de Família é a antítese de Irmão Lobo.
Amores de Família é um livro solar.
Há muito da Carla Maia de Almeida em Bolota [narradora de Irmão Lobo]?
Sim, há bastante, mas está longe de ser autobiográfico. A família do Irmão Lobo não é a minha família. Tenho um bocadinho de todas aquelas personagens.
Irmão Lobo foi narrado na 1ª pessoa; se fosse na 3ª, não teria a mesma força emocional.
Nunca. Quando escrevo, eu tenho de acreditar profundamente, tenho de me envolver, de me implicar no processo. A escrita tem muito a ver com a procura de identidade e há sempre dois envolvidos: o que escreve e o que vive. Quem é quem? No caso da escrita para crianças ainda é mais “esquizofrénico”, porque há um duplo destinatário. Quando estás a escrever para crianças estás a pensar, também, no adulto. É ele quem compra o livro.
Amores de Família é a família em agregação. Irmão Lobo é a família em desagregação.
Exacto. Provavelmente há uma necessidade inconsciente de compensar a descompensação. Já me disseram que o Amores de Família não é bem um álbum porque os textos podem ser isolados e lidos separadamente. Eu não concordo muito. O que faz a força e a diferença do livro é a complementaridade entre o texto, que é simultaneamente informativo e poético, e aquelas imagens tão actuais. As primeiras ilustrações da Marta Monteiro acompanhavam mais o texto, retractavam-no mais, no sentido poético e simbólico. Concordámos em não ir por esse caminho e decidimos que as imagens seriam “apanhados” da realidade. Como se andássemos pelo mundo, tipo “globetrotters”, eu a escrever e ela a desenhar, e a apanhar famílias de várias partes do mundo no seu quotidiano. As imagens acrescentam muitíssimo significado e dão ao livro uma leitura mais política. Eu quis provocar os leitores. Não sei se consegui isso, porque o Amores de Família requer alguma atenção. Não é um livro imediato como o Não Quero Usar Óculos.
Não Quero Usar Óculos é um sucesso nas aulas do 1º ciclo.
Onde Moram as Casas também é um livro muito amado. Não Quero Usar Óculos toca muito os miúdos e funciona muito bem até no Pré-Escolar. Penso que é o meu livro mais vendido. Onde Moram as Casas, pela sua poeticidade, também toca muito os adultos. Amores de Família requer algumas noções de mitologia clássica. Pus lá o glossário dos deuses e das deusas por alguma coisa. Tinha de ser.
Preocupaste-te exclusivamente com a poeticidade, ou tiveste em consideração o aspecto pedagógico?
O percurso que o livro tem depois de ser feito é impossível de controlar. É algo com que eu não me quero preocupar muito. Escrever é um exercício de liberdade. Não tenho dúvidas quanto a isso. Quero que o livro seja bem acolhido, como é óbvio. Escrevo para comunicar. Esse é o meu primeiro valor. É por isso que não tenho nada na gaveta. Quando escrevo é com um objectivo: a história é para aquela editora, aquele público, aquele ilustrador ou ilustradora...
Isso é o percurso que o livro faz depois e que tu não podes controlar, mas quando o escreveste tiveste esse objectivo pedagógico, além de provocador?
Prefiro dizer «político», em vez de «pedagógico». É um livro em que assumo certos valores, mas sem tomar partido. Pôr casais com pais do mesmo sexo, sobretudo homens, não é muito comum… Com a ajuda da Marta, quis fazer isso de uma forma elegante e fundamentada. É político, no sentido da polis, da cidadania... mas não tem nada de panfletário. Amores de Família desoculta e ilumina algumas partes da realidade. É uma vocação de quem escreve, de quem cria arte: iluminar as partes obscuras. Eu sou muito míope. Não sei se sabes isso…
Sei que Não Quero Usar Óculos é autobiográfico…
Sim. Comecei a usar óculos com quatro ou cinco anos. Foi traumático... Quando escrevi o Amores de Família, apercebi-me de que não havia muitos livros sobre a temática das novas famílias, dos novos agregados, das famílias monoparentais, das famílias do mesmo sexo, dos avós e netos, daquelas em que os filhos regressam. Nesse sentido, Amores de Família podia ter continuado, pois há mais modelos em todo o mundo, sempre em mutação.
Pensas que as crianças estão preparadas para ter dois pais ou duas mães?
Para te responder a essa questão, sem ser superficial, tinha de estar implicada numa de duas formas: afectivamente, ou seja, estar eu própria nessa situação, ou ter alguém muito próximo que estivesse... Ou então de uma forma teórica, com uma visão mais fundamentada e científica. Não tenho nem uma nem outra. O que sei é que as crianças estão sempre preparadas para serem amadas e respeitadas. Isso é no que eu acredito. Por isso é que neste livro eu e a Marta mostramos famílias funcionais e em situações felizes. Sempre.
Não pensas então que temos discutido mais pelo lado dos direitos dos adultos?
Os direitos das crianças têm de estar na primeira linha, não só na adopção. Tem de ser na educação, na saúde, na segurança social. Estamos numa altura em que oscilamos entre a reverência total e a negligência total. Isto é assustador. A criança, sendo um dos elos mais fracos da sociedade, sempre foi “carne para canhão”. Hoje, vemos isso de forma violenta; também porque há mais informação. Calculo que no século XII ou XIII fosse muito pior, mas é inadmissível vermos hoje as crianças a serem usadas como objetos sexuais ou como portadoras de bombas. É o total desrespeito. Ou então há uma reverência total, um egocentrismo familiar, que é muito fechado. As famílias, hoje, giram à volta de si mesmas. Há necessidade de proteção... e compreende-se. O mundo está muito agressivo.
As famílias são ilhas…
Sim, tornaram-se ilhas na tentativa de se protegerem. No entanto, quando se criam muros, eles valem para todas as ocasiões.
Na reportagem do Porto Canal sobre as novas famílias disseste o seguinte: “A minha definição de família está muito além do modelo clássico de pai, mãe e filho”. Assim sendo, qual é a tua definição de família?
Família é quem nos acolhe, em primeiro lugar. Família é quem nos ama, nos valoriza e respeita. Tenho uma noção um pouco mais tribal de família. Um agregado de pessoas que estão juntas por razões biológicas não faz uma família, pelo menos no sentido funcional. Dou-te um exemplo: quando me casei a primeira vez – e única – fiquei muito surpreendida quando soube que um casal que não tenha filhos não é considerado uma família. No sentido clássico de família, tu tens de procriar... A «pró-criação», como dizia há uns anos Manuela Ferreira Leite. Ainda há pouco isso foi usado como argumento no referendo da Irlanda. Então e aqueles casais que estão juntos há 40 anos, que se amam e nunca tiveram filhos, porque não puderam ou não quiseram? Não são uma família? Isto é espantoso! A sociedade está muito desagregada e precisamos de reconhecer novos modelos de família em que as pessoas não sintam que não fazem parte só porque não se encaixam no modelo clássico. Há um sentido de evolução e de construção que está muito para além da dita procriação.
E é isso que está presente em Amores de Família? Quiseste diluir fronteiras geográficas e sociais?
Sim, há ali famílias de várias proveniências. Há casais formados por elementos de diferentes nacionalidades, casais que se divorciaram e voltaram a casar, casais em que os elementos são do mesmo sexo, casais multirraciais, etc. Mas não queria nada muito étnico, tipo postais ilustrados; antes mostrar famílias de várias partes do mundo. Enerva-me o estereótipo de família que tu vês na publicidade aos bancos, aos seguros e aos carros. A mãe loirinha, o pai loirinho e os filhos loirinhos; todos branquinhos e sempre compostos. Não se parecem muito com as famílias que nós conhecemos. Sei que a função da publicidade é vender o sonho, mas a literatura é outra coisa.
A publicidade não é para romper; é para aproveitar.
Sim, mas isso está por todo o lado e faz com que te sintas estranho e deslocado, quando não pertences àquele estereótipo. Pode ser desagregador em qualquer idade, e quando se é criança e adolescente, pior, porque absorvemos tudo como uma esponja.
Nos títulos dos teus livros tu tens “casa”, “família”, “irmão” e a tua temática concentra-se muito na família. Por quê esse interesse?
Nós falamos daquilo que temos em abundância ou falamos daquilo que nos faz falta. A escrita é isso. Quando estás muito feliz queres viver. Não vais pensar em estar fechado a escrever. Eu falo daquilo que sinto falta – e a falta ocupa, às vezes, um lugar enorme. As minhas vivências familiares foram fortíssimas, cheias de coisas muito boas e outras muito más. E é aí que está o meu magma literário. Tenho uma memória emocional muito forte que se mobiliza quando escrevo. É a minha maior ferramenta. E as duas forças que me fazem ter vontade de escrever são sempre o amor e a revolta, disso tenho a certeza.
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