«O Estrangeiro»: o teatro do absurdo
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«O Estrangeiro» (Livros do Brasil) é, em grande parte, o ensaio «O mito de Sísifo» transformado em acção. O ensaio de Albert Camus (n.Mondovi, Argélia; 1913-1960) existe no comportamento do franco-argelino Meursault e na respectiva interacção do personagem com a sociedade que o rodeia, mas com a qual nunca se envolve.
Albert Camus tem em “O Estrangeiro” uma das suas obras mais traduzidas. A história de Meursault tem sido lida por várias gerações de leitores. A Livros do Brasil vem dar ao leitor uma renovada edição (agora com prefácio de António Mega Ferreira) desta obra do Nobel da Literatura.
Meursault recebe a notícia sobre a morte da sua mãe, que estava num asilo. O seu comportamento no funeral irá ser determinante na avaliação dos seus actos futuros. Logo no princípio do romance, com um parágrafo que ficaria a constar na História da Literatura, Meursault demonstra o seu parco vínculo emocional com a sociedade e com a família:
“Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”.
Quando regressa do funeral, interage com mais frequência com o seu vizinho (evito a palavra amizade), começa uma relação de maior proximidade com uma colega de trabalho, vai a banhos, assiste a um filme humorístico. E mata um “árabe”.
O absurdo para Camus tem como substância a arbitrariedade do sentido fixado pela sociedade e a ausência de significado da própria existência.
Para Camus, a ligação sentimental, seja amor ou amizade, e a ligação comportamental, com ligação à moral e à justiça, são construções sociais. Essas construções estão ligadas, inclusivamente, à produção artística. Sendo parte integrante na construção do sentido, a literatura também molda as regras, mais e menos formais, da sociedade.
Também para Meursault, o homem é governado pela sociedade, pela justiça e pela religião.
Todas, sem excepção, são construções humanas para contrariar o absurdo da existência e a arbitrariedade dos acontecimentos. O tédio, a observação fria e cínica, o desinteresse por o outro são características deste personagem. Em regra, tudo tanto lhe faz. Ele é um homem estrangeiro entre pessoas que não entende
O assassinato do “árabe” (nunca dotado de nome próprio) não resulta de qualquer emoção em relação à vítima; é a consequência de diversos actos, em que Meursault é secundário, e de factores exógenos. O exterior, mais do que fé ou a justiça, exerce influência determinante nas suas acções, aumentando a arbitrariedade.
A “ardência do sol” que lhe provoca “uma queimadura que não podia suportar mais”, o suor que lhe corria pálpebras abaixo cobrindo-as “com um véu morno e espesso”, o “sopro espesso e fervente” do mar e a imagem de uma navalha que lhe parecia uma “espada de fogo” levaram-no a disparar. Após premir o gatilho, sacudiu o sol e o suor.
Meursault não tem bondade nem maldade; não se orienta pela moralidade ou imoralidade.
Assume o absurdo de não querer nada além do concreto, do presente. Por isso, no interrogatório feito pelo juiz, ele fica entediado. Não tem sentimento de culpa.
No entanto, há duas situações em que ele abandona a sua passividade:
O momento em que dispara quatro tiros contra o “árabe” e quando o padre o visita na prisão.
Ainda no interrogatório, ele mantém a passividade quando o juiz lhe acena com Cristo na cruz; a oposição entre Cristo e as palavras do juiz, que adjectiva Meursault como anticristo, leva o assassino a interrogar-se sobre a sua personalidade. “Seremos também o que os outros pensam de nós?”
Mas será depois do julgamento, onde se deu mais importância às reacções do julgado no e após o funeral da mãe do que ao assassinato, que ele “explode” e clarifica o seu pensamento:
“Que me importava a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu Deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem, já que um só destino podia eleger-me a mim próprio e, comigo, milhares de privilegiados que diziam, como ele [padre], serem seus irmãos?”
O fascínio pela morte, a sua inevitabilidade, a completa ausência de moralidade, de imoralidade, bondade, maldade – ou seja o fascínio pelo absurdo- são expostos na reacção ao sermão do padre.
“O Estrangeiro” é a antítese do romance vinculado a uma causa. Camus analisa, sem tomar posição, da mesma forma que Meursault o faz: dizendo o indispensável.
Inquietante e provocador, “O Estrangeiro” escandalizou os leitores da época em que foi publicado. Hoje, perante a desagregação política e social, a individualidade do personagem de Camus encontra maior adesão. Em suma, sublinhe-se o que o tempo tem “feito” a “O Estrangeiro”: adjectivá-lo como obra-prima.
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