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"Tolstoi ou Dostoievski" (Relógio d`Água) de George Steiner



A crítica literária nasce de uma dívida de amor


http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=782691


Mestre para uns, influência para outros, conhecido de todos. George Steiner (Paris, 1929) é um dos mais importantes críticos literários do século XX. Tem conhecimentos próprios de quem ama aquilo a que dedicou a vida: o estudo e ensino de literatura. «Tolstoi ou Dostoievski» (Relógio d`Água) é um exemplo da capacidade de, sem soberba, o professor ensinar e contagiar o leitor com o amor pela literatura. Eis a grande herança deixada aos leitores: mais do que o conhecimento, o arrebatamento.

A obra agora editada (saiu há quase 40 anos com chancela da Yale University Press) começa com um “mantra” do autor. É uma ideia presente em toda a sua Obra: “A crítica literária deveria resultar de uma dívida de amor.”

O excesso de biografismo é apontado como um dos principais defeitos da crítica literária. A autonomia do texto deve ser extirpada do “atoleiro distractivo do contexto histórico-biográfico”. Steiner diagnostica o excesso e não a presença da contextualização histórica e biográfica.
Em “Tolstoi ou Dostoievski” é possível conferir as principais linhas de pensamento de Steiner. O mestre entende que a Crítica Antiga é a melhor abordagem de descodificação do texto literário. E entende Crítica Antiga como “uma abordagem crítico-interpretativa da literatura que terá em conta a ênfase na Nova Crítica no detalhe formal, na ambiguidade, na autoconstrução de modos literários, a identidade existencial do autor e, acima de tudo, aquelas dimensões metafísico-teológicas que deram à nossa literatura a noção de canónico”.
Guiada por estes princípios, a análise contrastiva justifica-se por incidir nos maiores romancistas russos da História da Literatura.
Steiner analisa os livros dos dois romancistas através de diversas perspectivas e usando todo o seu magistral conhecimento de literatura. A abordagem através do biografismo, do contexto histórico, da sociologia, da filosofia, da história do romance europeu, dos admiráveis anos da ficção russa e até das técnicas narrativas creditam o seu avassalador conhecimento multidisciplinar. As próprias influências de outras críticas no seu pensamento são mencionadas e as ligações entre teorias explicadas. Tudo fluido, sem “fedor escolástico” e acessível a quem sabe muito ou pouco sobre a obra dos dois escritores russos.
O falecido Eduardo Prado Coelho, estudioso com excelso conhecimento literário, afirmava que o crítico literário tinha de saber linguística, psicologia, filosofia, sociologia e tantas outras disciplinas para conseguir fazer um bom trabalho. A impossibilidade de conjugar, em profundidade, tantas disciplinas leva a concluir que o crítico somente se aproxima da obra literária. Jamais consegue apreender todo o significado. Uns livros abrem para outros; as ideias, sejam anteriores ou posteriores, ajudam a iluminar o texto. Steiner é um memorável guia por entre a pluralidade (e labirinto) de interpretações. É uma luz que ilumina o sentido.
A intertextualidade entre os principais livros de Tolstoi e Dostoievski é descodificada, tanto no que receberam de outros autores como no que viriam a influenciar posteriormente.
Entre “Tolstoi e Dostoievski”, Steiner distingue o poeta épico do dramaturgo, o racionalista do visionário e o cristão do pagão. As imagens de Deus e as propostas de acção divergem entre os dois autores. O ambiente (rural em Tolstoi, citadino em Dostoievski), a teologia (discordâncias entre o conceito de moral e de Terra Prometida), personagens (a “totalidade de objectos” em Tolstoi ou o estritamente dispensável em Dostoievski), a filosofia (a metáfora do governo de Deus em Tolstoi ou a independência e imprevisibilidade do homem em Dostoievski) são objectos de análise aprofundada.
“São opostos”, disse Merezhkovski, “mas não remotos nem estranhos”.
Todas as informações disponíveis são utilizadas para ajudar o leitor a usufruir do texto literário. O conceito de “texto aberto”, tão defendido por Jauss, Iser e Eco, é levado à prática.
A leitura dos clássicos de Tolstoi e Dostoievski (e o conhecimento de muitas ligações a autores como Proust, Flaubert, Dickens, Melville, Homero ou Shakespeare) será mais profunda e recompensadora depois da luz emprestada pelo luminoso George Steiner
“Tolstoi ou Dostoievski” é um daqueles livros que acrescentam qualidade ao já excelente catálogo da Relógio d`Água. E é, principalmente, um ensaio de um humanista que endossa o seu amor pela literatura de forma brilhante.

Em suma, um livro para ler antes durante e depois da leitura das obras dos dois mestres russos.

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