A Porto Editora tem publicado a obra de Patrick
Modiano (n. Boulogne-Billancourt; 1945),
Prémio Nobel 2014, com o objectivo de divulgar a qualidade literária de um dos
autores maiores da literatura francesa contemporânea.
Após
“Para que não te percas no bairro”, “Dora Bruder”, “As avenidas periféricas” e
“O horizonte” surge “A erva das noites”, livro coerente com a imagética e
temática da produção romanesca de Modiano.
“A Erva
das Noites” reforça a vontade do Nobel francês em criar tensão entre a realidade
e o mundo onírico. Os narradores de Modiano, muitas vezes confundíveis com o
autor, são falíveis. Esta característica é essencial no “jogo” literário entre
o Mundo Actual (factual) e o Mundo Possível, numa lógica modal. A memória é
sempre incerta e, como tal, falha na recuperação dos acontecimentos. E falha
por menor que seja a disparidade entre a recriação e o facto.
Jean, o
narrador de “A Erva das Noites” tem essa noção.
Ele é um
escritor de 60 anos motivado a investigar um período da sua vida em que se
fazia acompanhar por uma misteriosa mulher, chamada Dannie, e em que convivia
com um grupo de personagens estranhas no Hotel Unic, em Montparnasse. Com
recurso às suas esparsas recordações, o dossiê da Brigada de Costumes e um
bloco de notas com apontamentos dessa época, o narrador, que em muito se
assemelha (idade, profissão) ao autor, tenta reconstruir esse período. As
antigas anotações no bloco são as suas coordenadas, agora recebidas como
“sinais de morse que um interlocutor desconhecido envia de muito longe.”
A
distância temporal influencia a interpretação. E é nas “brechas da memória” que
o narrador constrói a (nova?) realidade, dotada de propriedades literárias.
A memória
atraiçoa cada vez que é activada para unir os apontamentos. A nebulosidade do
que é recordado dota a narrativa de mistério e da inevitável falibilidade.
A personalidade está dependente do tempo vivido e da
forma como este é recordado. Se bem que, com Modiano, a recordação é parte
essencial da vida e da construção da personalidade. Não há uma divisão vincada.
Pelo menos, na sua obra literária. A pessoa é formada pelas suas experiências.
Quando as recorda e as reinventa, a sua personalidade está sob uma pressão
transformadora. Ao longo do romance, Jean vai recordando a misteriosa Dannie
que, afinal, já havia tido vários nomes falsos e diversas profissões nunca
exercidas para esconder os seus actos do passado. A pressão sobre a identidade
existe também na dissociação entre nome e pessoa. E só quando Jean descobre os actos
passados de Dannie e o verdadeiro nome dela é que sente estar mais perto dessa
mulher.
Patrick Modiano continua a recolher dados, a formular
especulações, suposições e interrogações na procura (e construção) da
identidade das suas personagens. A sua luta contra o esquecimento e a forma
como tece o enredo remetem para um dos maiores escritores franceses: Marcel
Proust.
Tudo é falível em “A Erva das Noites”. Excepto a
qualidade literária de Patrick Modiano. Essa é garantida.
A vontade da Porto Editora em divulgar o Prémio Nobel
de 2014 tem um grande beneficiado: o leitor.
Mário Rufino
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=784023
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