A conflitualidade em debate
Durante os dias 8, 9 e 10, em Matosinhos, e 11 de
Maio, em Lisboa, O “LeV – Literatura em Viagem” debateu ideias, aproximou línguas
e promoveu o contacto entre culturas distintas.
Durante os 3 dias de Matosinhos, a música, a política
e a literatura foram as perspectivas adoptadas para os debates sobre o
conflito. Jorge Sampaio, Rui Tavares, João Pereira Coutinho, Luís Represas,
Joan Miquel Oliver e Pedro Abrunhosa juntaram os seus contributos a diversos
escritores e jornalistas num festival literário que celebrou a viagem.
O primeiro passo deste caminho, organizado pela
Câmara Municipal de Matosinhos e produzido pela Booktailors, foi dado por Jorge
Sampaio, Presidente da República entre 1996 e 2006, no Salão Nobre do edifício
dos Paços do Concelho.
Na “Conferência Inaugural”, Jorge Sampaio declarou
que o maior interesse de uma viagem é o encontro com o “Outro” e a procura do
diferente. De outra forma, a viagem pode ser longa, mas o viajante nunca chega
realmente a “sair de casa”.
Os múltiplos cargos políticos que ocupou
permitiram-lhe visitar todos os municípios do país. As frequentes deslocações
ao estrangeiro alimentaram o seu ódio por aeroportos.
A quantidade de participações oficiais e o pouco
tempo de descanso fazem das Viagens de Estado “tudo menos distracção.”
“Cada gesto e cada palavra exprimem Portugal. Isso
tudo obriga a uma grande concentração”
Sempre fundamentando-se com exposição fotográfica,
Jorge Sampaio contou histórias passadas com as muitas pessoas que teve
oportunidade de conhecer nos diversos países visitados.
“O que conta
para mim são as pessoas que nós encontramos”
Nesses encontros de culturas, de civilizações e de
perspectivas sobre o mundo, o ex-Presidente da República procurou a narrativa,
as histórias, e encontrou a capacidade de interlocução do povo português. Os
portugueses - afirmou - têm uma universalidade atrás deles que muitas vezes não
reconhecem.
A questão do “Outro” foi transversal à sua
comunicação. A ideia de viagem como caminho para entender diferentes
civilizações foi partilhada pelos diferentes convidados que, nos dias seguintes
à “Conferência de Abertura”, participaram nas mesas de debate e nas
entrevistas.
Após a apresentação de “A Invenção da Vida” (Verso
da História), de Lourença Baldaque, “Raiz do Mundo” (Verso da História), de
Francisco Ribeiro Rosa e “Viagens Pagãs” (Parsifal), de Fernando Dacosta, a
primeira Sessão teve a presença do escritor Catalin Florescu (romeno) e o
jornalista Artur Domoslawski (polaco) para debater “Os Conflitos Interiores”,
com moderação de Luís Ricardo Duarte (jornalista do Jornal de Letras).
O poema “Whether we write or speak or do but look”,
de Fernando Pessoa, foi o mote para o debate efectuado em língua inglesa
(tradução simultânea).
Domoslawski, autor do polémico “Ryszard Kapuściński:
A Life”, confessou a dificuldade em descrever uma pessoa ou uma comunidade e
recordou um conto de Borges, intitulado “Borges e Eu”, em que o autor argentino
mostrava perplexidade sobre a interpretação de si próprio. Na sua perspectiva
de jornalista, tem de existir um vínculo com a verdade “from the warm interior
to the cold of writing”. Um dos factos interessantes das viagens feitas pelo
jornalista polaco foi o de lhe ter permitido construir um assinalável domínio
do português do Brasil num país improvável. Foi em Inglaterra e com um grupo de
estudantes brasileiros.
Catalin Florescu é romeno, vive na Suíça e escreve
em alemão. A sua saída do país natal aconteceu durante o regime de Ceausescu. A
Roménia, afirmou, é a paisagem da alma, e a língua alemã a sua ferramenta. Não
tem qualquer problema com essa pluralidade. A sua identidade é um assunto bem
resolvido.
Catalin Florescu procura ir aos países onde acontece
a acção dos seus livros. Investiga muito e vai falar com as pessoas. Ele quer
conhecê-las e ao tempo em que ele e elas vivem. Envolve-se. Nunca se sente
“lost in translation”, nem nunca perdeu a sua voz.
No seu tom peremptório, afirmou que se preocupa com
a existência humana e a consciência de si mesmo, seja como ser humano, escritor
ou psicólogo (área de formação).
As metáforas que remetem para a nossa humanidade,
mencionadas por Fernando Dacosta na apresentação do seu livro, podem estar nas
grandes deslocações de Catalin Florescu ou concentrarem-se na própria
habitação, ou mesmo no quarto, tal como Xavier de Maistre escreveu em “Viagem à
volta do meu quarto”.
Tessa de Loo (escritora holandesa) e Paloma
Díaz-Mas (escritora espanhola) debateram os conflitos ancestrais dos dois
animais que, em tantas casas, são companhia do ser humano: os cães e os gatos.
Para Tessa de Loo, o cão e o gato são metáforas do
ser humano. Eles são a esquerda e a direita políticas, a veracidade e a ficção
narrativas, o tempo quase parado dentro de um microcosmos alheio à velocidade
do exterior.
Sendo diferentes, têm de ser educados dentro de uma
estratégia de respeito e entendimento mútuo. Tessa de Loo, confessa “dog
lover”, discordou muitas vezes de Paloma Díaz-Mas, “cat lover”, nesta conversa
em inglês, com tradução simultânea, moderada por Sérgio Almeida (jornalista).
Paloma Díaz-Mas, autora de “O que aprendemos com os
gatos” (Quetzal), defendeu a existência de um pacto com o gato. Tem de haver
mútuo respeito. A autora nascida em Madrid rejeitou a impossibilidade de convivência
entre o ser humano, o gato e cão.
No entanto, as diferenças são evidentes: enquanto
com um cão se pode aprender o conceito de lealdade, com o gato tem-se a
sensação de que se é tolerado dentro do seu território.
Se o cão fosse um homem, disse Tessa de Loo, não
votaria ou votaria nos democratas.
A coabitação ente opostos acontece também numa casa
a que chamamos Parlamento. O debate de diferentes perspectivas dominantes
parece separar mais um lado do outro do que o cão de um gato.
Rui Tavares (fundador do partido LIVRE), João
Pereira Coutinho (cronista e co-autor de “Por que virei à direita”) debateram
“Os conflitos ideológicos” com moderação de Pedro Vieira (Booktailors).
Rui Tavares apontou o nascimento das duas facções
políticas como um acontecimento simultâneo datado entre 28 de Agosto e 11 de
Setembro de 1789.
Nos Estados Gerais, em Versalhes, a Nobreza, o
Clero e o Povo reuniam-se em salas diferentes. O Povo exigiu que se sentassem
todos na mesma sala com o intuito de haver igualdade de voto (1 voto, 1 homem).
Alguns elementos da Nobreza passaram para o lado do Povo, considerado o 3º
Estado, que chamou a si mesmo a “Assembleia dos Comuns”. A primeira decisão foi
a de abolir os direitos feudais, a segunda foi a de aceitar a “Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão”. Depois destas decisões, ficaram perante um dilema: o
Rei deveria ter o direito de vetar as decisões da Assembleia?
A divisão entre esquerda e direita é vista, pela
primeira vez, nesta ocasião. Na última semana de Agosto dá-se a reunião em que
é dito ao Presidente da Mesa que as divisões eram bem visíveis. À esquerda do
Presidente da Mesa (direita da sala) estavam os que defendiam que o Rei não
deveria ter o direito ao veto; à direita do Presidente da Mesa (esquerda da
sala) estavam os que apoiavam o direito ao veto.
Para o fundador do LIVRE, “Ambas [esquerda e
direita] definem-se – como não poderia deixar de ser – por formas diferentes de
olhar para a igualdade e liberdade”.
João Pereira Coutinho afirmou que hoje a diferença
é mais complexa, embora continue a fazer sentido.
“Existe uma diferença que é sobretudo aquilo a que
os cientistas políticos designam de “Princípio da Rectificação”. A esquerda
tende a rectificar as desigualdades sociais através do papel do Estado, enquanto
a direita tende a valorizar os aspectos como a liberdade individual e a ideia
de que, essencialmente, a noção de igualdade ser não de resultados, ou de
redistribuição de riqueza, mas uma igualdade de todos perante a lei”
Se houvesse bons e maus, afirmou Rui Tavares, não
se chamavam esquerda e direita; chamavam-se bons e maus.
A retórica na política está, hoje, afastada da definição
e nobreza platónica de outros tempos. Para Platão, a retórica, que era
considerada uma qualidade, devia estar acompanhada de outra característica
benévola. Caso contrário, a retórica serviria para seduzir um homem, ou uma
comunidade, a enveredar por um caminho dominado pela maldade.
Na contemporaneidade, o mal parece ser um lugar-comum
em que o individualismo impera sobre a cooperação colectiva. Ou não?
Joel Neto (escritor português) e Bruno Vieira
Amaral (escritor português) debateram o tema “O Mal não é um lugar-comum”, com
moderação de Pedro Marques Lopes (jornalista da TSF e SIC), enquanto Kim Young-ha
(escritor sul-coreano) e Tiago Salazar (escritor português) debateram,
posteriormente, “O individualismo é o sonho do mal”, com a moderação de António
Reis (jornalista da SIC).
Para Bruno Vieira Amaral, o Mal não tem sentido; é
um desequilíbrio ou desarmonia. No entanto, um escritor tenta compreendê-lo. A
alegria, pelo contrário, não suscita interrogações.
Dando o exemplo das catástrofes naturais, afirmou
que o Mal é uma interrupção da previsível normalidade. A pergunta impõe-se
nestas circunstâncias: “Será isto produto de uma vontade?”
O objectivo de um acto maldoso torna a relação do
homem com o Mal ainda mais complexo. Quando é que a violência é legítima ou ilegítima?
A legitimidade da violência depende do objectivo do acto violento? Será vista
como maldade quando surge para nos defendermos?
Joel Neto concentrou a sua atenção no reverso do
Mal. O escritor açoriano não tem tanta certeza de que é mais aliciante entender
o Mal.
Apesar do interesse em compreender as personagens
complexas e capazes de atrocidades, na literatura mundial, Joel Neto está muito
mais inclinado para escrever sobre “ a possibilidade do Bem” do que escrever
sobre a natureza do Mal.
Raskolnikov foi um exemplo, entre outros, de como
um indivíduo pode ser complexo e titubear entre o Bem e o Mal. Raskolnikov
(“Crime e Castigo”) não era um homem egoísta, já quanto a Ahab (“Moby Dick”), o
seu egoísmo e obsessão levaram-no a impor a sua individualidade sobre os homens
que o rodeavam.
Tiago Salazar, em “O individualismo é o sonho do
mal”, afirmou:
“Adoro um personagem há muitos anos. É o Heathcliff
de “O Monte dos Vendavais”. Ele é mesmo mau e não quer ser melhor do que é. Ele
tem uma escolha. Nós também temos a escolha, todos os dias, de decidir ser,
como indivíduos, bons ou maus. Todos os dias, temos experiências de Bem e Mal
no nosso íntimo.”
Para o autor português, em países com regime
ditatorial, o individualismo é discutido como liberdade individual, seja no
aspecto social ou artístico. Ainda hoje, afirmou, após quarenta anos de
democracia em Portugal lutamos para sermos indivíduos.
Na realidade política norte-coreana, a individualidade
é um objectivo.
Kim Young-ha sempre almejou a conquista do
individualismo. Na Coreia do Sul, a tarefa nunca foi fácil. Era um sonho. A sua
geração não queria fazer parte do sistema. Hoje, os sul-coreanos estão no
centro de uma confusão entre o individualismo e outro qualquer tipo de sistema.
Devido a isto, o autor sul-coreano afirmou que o individualismo tem muitas
caras e depende da realidade cultural e política.
Gonçalo M Tavares falou da maldade individual como
parte de um conjunto composto, também, pela maldade colectiva. O instinto de
sobrevivência (“prefiro que o outro morra em vez de ser eu”) complementa a
ideia colectiva inerente à indústria da morte. O acto e decisão individual são acompanhados
pelo fomento da proliferação das armas e dos conflitos.
O sacrifício é o momento em que o homem rompe com
essa realidade. No entanto, “toda a decisão do bem e do mal é um dilema”. E num
dilema há sempre perda, seja qual for a decisão, disse o autor de “Viagem à
Índia”, no debate “Escrever, Marchar”, com moderação de Pedro Vieira.
Esse dilema está presente, também, na produção
literária. Segundo Francisco José Viegas, interlocutor de Gonçalo M Tavares,
“nós sabemos o que é o bem: é a penicilina, a epidural, o gelado de limão. O
mal, nós nunca sabemos de onde é que ele vem. O mal, às vezes, vem de coisas
que nós pensamos serem muito boas”.
O Ex-Secretário de Estado da Cultura mencionou um
elemento do público, presente num debate anterior, que perguntou como é que os
escritores podem mudar as pessoas e acabar com o mal. “Impossível”, respondeu.
“ Chegámos à conclusão de que o Mal e o Bem são necessários para a construção
do romance. (…)“ a literatura é um campo de conflitos entre o Bem e o Mal”.
Richard Zimler (escritor norte-americano) adopta
esse conflito através das personagens.
Em debate sobre “O conflito ajuda à criatividade?”
(sessão de encerramento), com Joan Miquel Oliver (músico e escritor espanhol),
Pedro Abrunhosa (músico português) e moderação de Tito Couto, o escritor
norte-americano afirmou que os conflitos interiores acontecem sobre o ponto de
vista dos avatares por si criados. O autor é uma espécie de actor.
Joan Miquel Oliver e Pedro Abrunhosa discordaram
sobre o papel do artista. Para o músico portuense, “a crise e o conflito não
ajudam a arte. A arte, por si própria, é fruto da conflitualidade interior”. E
acrescentou que “a arte é uma forma de confrontar o indivíduo com a realidade”.
E aqui se concentra a divergência entre os dois músicos. Para o músico catalão,
o vínculo com a realidade não depende da condição de artista, mas sim da
escolha do indivíduo. A realidade não vincula a posição do artista. Este pode
querer a arte para uma posição de conflito, ou não. Assim como pode cantar ou
escrever sobre os problemas interiores, ou não. “ Se a realidade não me
satisfaz, tenho que criar um mundo artificial que me satisfaça, a mim primeiro,
e depois às pessoas que ouvem os meus discos”
O aproximar de ideias é, muitas vezes, abdicar da
pluralidade de caminhos para o nascimento de um caminho único, de um pensamento
único. O LeV optou pela pluralidade de pensamentos, de ideias, de culturas.
Das palavras do LeVzinho à música clássica, a 9ª
edição do LeV foi muito bem recebida pelo muito público, numa cidade aquecida
pelo sol e animada pela Festa do Senhor de Matosinhos.
O LeV – Literatura em Viagem contou ainda, na sua
programação, com entrevistas a Luís Represas (por Tito Couto, da Booktailors) e
a Mário Cláudio (por Maria João Costa, da Rádio Renascença)
O Quarteto de Cordas de Matosinhos finalizou os 3
dias de festival com o “Quarteto de Cordas nº 16, em Mib maior, K428 (1783)”,
de Wolfgang Amadeus Mozart.
O fim oficial aconteceu já em Lisboa, na Fundação
José Saramago, com a apresentação de “Olhares sobre a História da Música em
Portugal (Verso da História), e o debate “Que Conflitos para o século XXI?”
entre Dulce Maria Cardoso e Rui Cardoso Martins, com moderação de Pedro Vieira.
Mário Rufino
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=772970
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