A
Gardunha é terra de castanheiros e de cerejeiras. O verde pontilhado a vermelho
espalha a sua sombra nas localidades. E os homens saem de casa de forma a viver
da riqueza da terra. Colhem as cerejas para fruição de quem chega ao interior. É
fruto merecedor do canto de um artífice como Eugénio de Andrade. As metáforas
do poeta são janelas para o imaginário:
“
(…) Abrir os braços, acolher nos ramos/ o vento, a luz, o que quer que seja,/
sentir o tempo, fibra a fibra,/ a tecer o coração de uma cereja” (A uma
cerejeira em flor)
A
aragem e a sombra dos castanheiros do “Glamping Casa do Guarda”, a intimidade do
“Teatro Clube de Alpedrinha” e a formalidade do “Auditório|A Moagem”, no Fundão,
receberam, nos dias 23 e 24 de Maio, a 2ª edição do Festival Literário da
Gardunha.
Diversos
ficcionistas, poetas e jornalistas falaram sobre “Lugares Imaginários” através
da ficção, da metáfora e do factual.
Apesar
de não se terem confirmado as programadas contribuições de Carlos Vaz Marques,
Ricardo Araújo Pereira, Eduardo Lourenço, João Tordo, Ferreira Fernandes e João
de Melo, o festival conseguiu dotar de interesse a maior parte das mesas de
debate.
Autores
emergentes como João Pedro Ricardo (Prémio Leya), Ana Cássia Rebelo (autora de
“Ana de Amsterdam”), Andréa Zamorano (“A Casa das Rosas”), Susana Moreira
Marques (“Agora e na hora da nossa morte”), juntaram-se a escritores com
produção literária longa e consolidada como Inês Pedrosa e Nuno Júdice.
Foram
exactamente estes dois escritores que, acompanhados de Tatiana Salem Levy e
Margarida Gil dos Reis (moderadora), participaram na primeira conversa.
Nuno
Júdice gosta de imaginar as viagens dos outros. É devido a essa vontade que a
sua poesia é dotada da imagética oriunda de lugares que nunca conheceu. Sente
que pertence tanto aos lugares por onde passa, ou fica, como dos locais por
onde viaja mediado pelo olhar dos outros. Os encontros com personagens e a
passagem por lugares imaginários fazem dele um “turista acidental”.
A
vontade de Nuno Júdice, que não sente ser essencial deslocar-se, é contrária à
de Tatiana Salem Levy. A autora de “A Chave da Casa” (Prémio São Paulo de Literatura)
e de “Dois Rios”, editado pela Tinta-da-China, afirmou necessitar da
experiência real dos lugares. Não conseguiria, confessou, escrever “Budapeste”,
como Chico Buarque o fez. A sua escrita é construída com a mistura de imagens
de países, imaginação e de realidade. Os seus lugares são sempre uma soma de
lugares. Para a escritora radicada no Brasil, a deslocação física pode não
chegar a ser viagem; ir ao encontro do outro, do desconhecido, requer tempo e
abertura.
Para
Inês Pedrosa, que partilha a paixão pelo Brasil, a viagem essencial para o
escritor é dentro da sua cabeça. Seriam as viagens interiores e exteriores de
Pessoa a mediar o conhecimento adquirido por Inês Pedrosa sobre Lisboa.
Raquel
Ochoa é da mesma opinião. O seu trabalho como romancista é imaginar.
As
palavras são base de comunicação e fonte de imaginação. A autora de “A
Casa-comboio” (Prémio Agustina Bessa-Luís) participou no debate com Valério
Romão (autor de “Autismo”), Pedro Eiras (“Bach”), Ana Cássia Rebelo e Luís
Ricardo Duarte (moderador).
Ana
Cássia Rebelo, que foi entrevistada pelo Diário Digital, afirmou que os blogues
e as redes sociais são um lugar imaginário, uma realidade paralela e de
delírio.
Esse
lugar imaginário foi o suporte para o seu blogue “Ana de Amsterdam”. As suas
mudanças anímicas, principalmente as que a levam ao desespero, são registadas
nesse lugar virtual.
Segundo
Pedro Eiras, mudamos ao longo dos anos e continuamos a pensar que somos os
mesmos. A grande utopia é a de pensar que estamos perante uma realidade que
podemos transformar em palavras. A consciência do ser humano depende da
linguagem. E é esta consciência, segundo Valério Romão, o factor ordenador do
mundo e do universo para o ser humano.
João
Ricardo Pedro em conversa com Manuel João Ramos e Fernando Paulouro Neves
(moderador) contou ter passado a sua infância na região onde se encontrava.
Filho do êxodo rural, o autor de “O teu rosto será o último” (Leya) recordou os
avós que eram de uma pequena aldeia. Desta forma, o lugar imaginário de João
Ricardo Pedro é a infância. Os dias passados na piscina de Alpedrinha eram o
Paraíso. As histórias das gentes dessa terra, ouvidas na apanha da azeitona,
foram o primeiro contacto com a literatura.
Toda
a vida de Manuel João Ramos, antropólogo e autor de “Histórias Etíopes: Diário de Viagem”
(Assírio & Alvim), andou à volta de lugares utópicos apesar de, conforme o
próprio, ele ter uma vida sedentária.
De acordo com Tânia
Ganho, “O
passado é um país do qual todos nós emigrámos”. Esta citação de Salmon Rushdie enfatizou
as próprias palavras da autora: “Tenho a noção de que, quando acumulamos muitas
vidas, o passado torna-se uma ficção, um lugar imaginário.”
As
personagens de Tânia Ganho têm consciência do seu desenraizamento. A autora de
“A Mulher-Casa”, livro editado pela Porto Editora, procura dotar as suas
personagens, essencialmente mulheres, de voz e identidade próprias. Essa noção
de desenraizamento pode estar ligada às constantes mudanças de casa e de país
da autora, no passado recente.
O
passado de José Manuel Castanheira está em Alpedrinha, local onde decorreu o
debate. Cada rua, pedra, lugar e pessoa faz parte do imaginário do cenógrafo. No
Teatro Clube de Alpedrinha, local onde brincou, José Manuel Castanheira lembrou
os dramaturgos que escreviam textos “de cordel”, todas as semanas, para
exactamente esse teatro onde decorreu a mesa. De acordo com o cenógrafo, “a
cenografia é a arte de invenção de espaços para qualquer interpretação”.
De
acordo com Andrea Zamorano, que partilhou a mesa de debate com Tânia Ganho,
José Manuel Castanheira e Rui Lagartinho (moderador), o Brasil tornou-se um
lugar imaginário. A autora, oriunda do Rio de Janeiro, afirmou que o Brasil que
existe hoje é diferente do Brasil recriado pelas suas memórias da infância e
adolescência. Os locais, para Andrea Zamorano, são olhados através da
biblioteca pessoal e, como tal, tornam-se pessoais e imaginados também.
A
autora brasileira terminou a sua intervenção com a leitura de “Vou – me embora
pra Pasárgada”, de Manoel da Bandeira.
A
Pasárgada de Manoel da Bandeira, ou um outro lugar imaginado, foi provavelmente
desejado como local de refúgio por algum do público presente na mesa menos
interessante do festival.
O
último debate do dia 23 foi o contraponto dos restantes cinco. Sob a moderação
de Ricardo Paulouro Neves, a longa exposição de Gonçalo Salvado e Maria João
Fernandes não permitiu que João Morgado, autor de “Vera Cruz” (Clube do autor),
e Manuel Silva Ramos, autor de “Pai, levanta-te, vem fazer-me um fato de
canela!” (A.23 edições), tivessem oportunidade para desenvolver as suas
participações.
Manuel
Silva Ramos ainda teve tempo para afirmar que o lugar imaginário dos
portugueses é o cu-de-judas. Mas pouco mais. Não houve imaginação que
resistisse. Teria sido a hora ideal para ir ver as cerejeiras do belíssimo
“Camping – Casa do Guarda”.
Foi
a antítese da mesa anterior, que contou com as participações de Susana Moreira Marques,
António Valdemar e Rui Cardoso Martins.
O
debate moderado por Fernando Paulouro Neves foi o espelho da qualidade do
Festival Literário da Gardunha. Os “lugares imaginários” ficam mais afastados
quando o factual impera. A jornalista Susana Moreira Marques, que foi entrevistada
pelo Diário Digital, disse escrever para os lugares deixarem de ser
imaginários. A autora de “Agora e na hora da nossa morte” (Tinta-da-China)
afirmou que o seu livro teve a intenção de tirar a morte desse lugar
imaginário.
O
jornalista e escritor Rui Cardoso Martins, autor de “O osso da borboleta” (Tinta-da-China)
” tenta explicar pela ficção o que com ele se passou na infância e
adolescência.
A
fronteira entre realidade e ficção é tão ténue que o autor, quando cavalgou com
índios norte-americanos, teve a sensação de estar a misturar essa realidade com
os filmes de John Ford. Os livros e os filmes, áreas-primas da ficção,
influenciam as experiências vividas, de facto.
Factos
foi o que não faltou a António Valdemar, dono de memória e cultura prodigiosas.
Foram
dois dias de debates a finalizarem um festival que, na realidade, já decorria
desde o dia 18, com o início das residências literárias de Valério Romão, Tatiana
Salem Levy e residência artística da fotógrafa Céu Guarda.
O
espectáculo “Portugal, meu remorso”, com João Reis e Ana Nave (dia 23), a
apresentação (dia 22) de “Desamparo” (D. Quixote), de Inês Pedrosa e do
Lançamento de “Viagem a Itália”, de José Manuel Castanheira e Pedro
Castanheira, no piquenique literário (dia 23), também fizeram parte do programa
do Festival Literário da Gardunha.
É
raro assistir a um festival literário com esta envolvência com a natureza. A
organização aproveita e bem tudo o que área oferece.
A
Serra da Gardunha (e circundante) foi lindíssimo “palco” para um festival que,
ao 2º ano da sua existência, mostra qualidade suficiente para ir conquistando
público.
Mário
Rufino
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=774913
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