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"O último europeu - 2284" (D. Quixote), de Miguel Real



Em clara dialéctica com «1984», de George Orwell e “Utopia”, de Thomas More, Miguel Real (pseudónimo de Luís Martins, n.1953) criou um romance com propriedades ensaísticas de base antropológica e sociológica. v (D. Quixote) é, em muitos aspectos, um ensaio sobre uma situação hipotética.

300 Anos após o mundo imaginado por George Orwell, existe a Nova-Europa, alguns povos bárbaros ocupando os Baldios, a Grande Ásia, com o seu povo Mandarim em incontrolável crescendo demográfico, os Americanos, pragmáticos e cínicos no jogo geopolítico, e o Império Russo, pouco relevante no desenvolvimento deste romance. Para todos, um só planeta já seco de petróleo, parco em recursos naturais e sob selvagem pressão demográfica. A razão dos europeus, o instinto dos bárbaros e a ambição dos mandarins provocam uma guerra civilizacional. Luta-se pela sobrevivência do corpo, da ideia, da memória.
O elo dos neo-europeus com os povos primitivos existe nos Baldios. Os povos ocupantes desses territórios, situados nas periferias do mundo paradisíaco, são o espelho da contemporaneidade: lutam por alimento e pelos recursos naturais, estando entregues à ambição e livre arbítrio. Em contraste com esta brutalidade física, os neo-europeus não distinguem a realidade exterior da realidade mental.
“Ambas integram uma única realidade visível, a que os olhos interiormente vêem e a mente pensa. (...) Tudo são imagens, que o neo-córtex e o hipercórtex relacionam entre si.”
A guerra por recursos naturais é fomentada principalmente pelos Mandarins, que precisam de mais território para se expandirem. Os bárbaros, por sua vez, anseiam por mais conforto, mais alimento, e matam e destroem o mais que podem.
A sociedade neo-europeia, através da demanda pelo bem comum, esmaga a possibilidade de individualidade, seja no pensamento, no desejo, ou na acção. A Grande Ordem instalou-se. O livre arbítrio é inoculado. O Grande Cérebro Electrónico reúne os pensamentos de todos os habitantes, conjuga-os, e delibera sobre as acções a tomar.
“A Nova Europa nascera contra a falsa democracia do império do voto por massas não esclarecidas, em cujo cérebro não reinava a verdade, mas a opinião superficial, parcial e interesseira.”
Numa sociedade sem religião, o homem entrega-se a um ser etéreo, omnipresente e omnisciente. Os diálogos são internos; a formação de uma resposta depende dessa figura incorpórea. O neo-europeu está entregue a uma entidade nascida na vontade global.
A Linguagem desapareceu; ou pelo menos a linguagem que hoje nos une. E as diferenças contidas pelas interpretações na linguagem também. O aparelho vocal foi sendo menos usado, tornando-se cada vez menos eficaz até cair no exotismo de um facto referente a minorias. É um mundo uno, pragmático, frio e evoluído no interior do gnosticismo pagão. A Língua é comum; é “Universalis”.
“Os nossos arquivos centrais, os nossos museus e os conteúdos históricos e culturais transmitidos e registados nas nossas redes neuronais designam de por PRÉ-HISTÓRIA todo o longo período até à libertação do cérebro humano das pulsões instintuais e da necessidade de comunicação por via da fala, isto é, até ao século XXII.”
As metamorfoses civilizacionais são gravadas na História com violência.
Os neo-europeus são invadidos pelos Mandarins e ficam desorientados sem a figura paternal, omnisciente e omnipresente do Grande Cérebro Electrónico, entretanto desligado. Sem essa orientação, os neo-europeus adquirem uma característica já julgada como extinta: sofrem.
A figura tutelar do personagem Reitor (narrador) é muito próxima do ensaísta. Ele opta por uma visão exterior, assumindo a responsabilidade de registar a memória da sociedade num documento intitulado “”Crónica da Criação e Extinção da Nova Europa” para, num futuro perfeito, a respectiva ideologia possa renascer, florescer e implementar-se como nos anos anteriores à derrota com os Mandarins. Para escrever esse cânone da civillização, tem de voltar aos métodos antigos de registo e diferimento da mensagem: através da caneta e do papel.
A memória é o principal campo de batalha.
Estilisticamente, o autor português adapta o discurso ao seu emissor. O Reitor, afastado da linguagem escrita, retoma-a através de frases curtas, de sujeito-verbo-objecto, coerentes com as características de habitante dessa Nova Europa.
Um dos aspectos interessantes deste romance é a hibridez de géneros literários. Miguel Real aborda um assunto e estuda-o. Mas parte de um mundo hipotético e forma-o, dá-lhe vida, confere-lhe propriedades. O assunto em estudo não existe, mas poderá vir a existir. Surge de uma especulação: “Como será o mundo 300 anos após 1984?”
A procura da pura originalidade é um esforço inerente a qualquer grande escritor. E está condenada à derrota. O novo só existe em contraste com o seu antecedente. A sociedade de “O último europeu- 2284” existe, literariamente, porque já havia um começo. A partir daí, nada é uma originalidade; tudo é um recomeço.
Umberto Eco, em “Lector in fabula”, já havia afirmado que “um mundo possível é uma construção cultural.”
Quando o Reitor tenta fundar uma nova sociedade, ele observa um novo Adão, a primeira personagem a ser destacada, a ser nomeada: Jorge Tomás.
“Sapatos europeus sintéticos ali, em clima tropical e solo terroso não faziam sentido. Devia observar o calçado de Jorge Tomás, aprender com ele, que ali vivia há anos."
O “Fiat lux” de uma civilização faz-se com estrondo e com violência. Assim foi o aparecimento da Nova-Europa, assim é a consolidação da Grande Ásia”, assim será um hipotético ressurgimento de uma cultura resgatada da memória e renovada pela aprendizagem.
Do pessimismo e inteligência de Miguel Real surgiu um novo e último europeu.

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=764251

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