A 3ª edição de “Fronteira-Festival Literário de Castelo Branco”, com produção da Booktailors e organização da Câmara Municipal de Castelo Branco, decorre nos dias 10, 11 de Abril e 4 de Maio. Esgotados os dois dias marcados para Abril, o Fronteira interrompe-se até 04 de Maio, dia em que Mia Couto irá ser homenageado em Castelo Branco.
Durante o primeiro período do Fronteira, o público teve a oportunidade de assistir a debates entre João Afonso e Renato Filipe Cardoso (1ª Mesa; tema: “Onde fica a fronteira entre razão e sentimento”), Bruno Vieira Amaral e João Tordo (2ª Mesa, “Fronteiras para o século XXI”), João de Melo e Valério Romão (3ª Mesa, “Entre Macondo e a Ilha dos Amores”), Francisco José Viegas e José Manuel Fajardo (4ª e última mesa, “De Espanha, nem bom vento nem bom casamento”).
Gémeo Luís, Marta Torrão, Joana Lopes, José Pires, Fernando Alvim, Catarina Correia Marques e Paulo Galindro foram os autores que dialogaram com os alunos das diversas escolas visitadas.
Pedro Vieira (ilustrador e escritor) deu uma Oficina de Ilustração e, intercalando com Tito Couto (Booktailors), moderou diversas Mesas.
O encerramento deste período do festival viria a ser um dos momentos a memorizar pelo público presente. Valter Hugo Mãe mostrou a sua capacidade e inteligência para criar empatia com o público que encheu o anfiteatro da Escola Superior de Educação de Castelo Branco.
A fronteira conceptualiza-se no imaterial e no material. O tempo divide-se, com maior ou menor demarcação, entre presente e passado, enquanto o som não existiria sem relação com o silêncio. A fronteira geográfica é mais do que um posto fronteiriço. A cultura é património que une, mas também tem avassaladora capacidade de divisão. A separação é imprescindível na existência de uma fronteira. No entanto, a relação entre emoção e razão é demonstrativa da falibilidade das relações que não tenham em consideração a interacção entre elementos. O som e o silêncio, as culturas, o tempo, a emoção e a razão têm na interacção a demarcação de um espaço são e fértil.
Durante o “Fronteira”, Castelo Branco é mais do que uma cidade da região centro do país; é um território onde as fronteiras são pensadas e debatidas.
A colaboração entre som e palavra tem na poesia a sua simbiose. A música de João Afonso encontra nas palavras de Agualusa e Mia Couto (em “Sangue Bom”) o perfeito complemento.
Na 1ª Mesa do festival, o músico falou sobre a ligação entre o som e a palavra nas suas composições. A influência de Zeca Afonso (seu tio), José Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho forma a sua vontade em cantar com a mesma naturalidade com que se fala. A métrica e a acentuação são características que respeitam o sentido e a musicalidade. A ligação ao exterior, à sociedade, acontece pela intervenção cívica e política das suas composições. Essa intervenção pluralizou-se e emancipou-se da exclusiva influência política.
A relação entre pessoas e a ostracização pelas novas tecnologias são campos de intervenção. A racionalidade encontra no imaterial o seu veículo de protesto. A lógica das ideias utiliza o veículo emocional para influenciar o pensamento de quem ouve.
Renato Filipe Cardoso nomeou o “hip-hop” ou o “rap” como novas e actualizadas formas de denúncia. A inquietação mantém-se, mas com renovadas demonstrações.
Segundo João Tordo (Mesa 2), temos o privilégio de viver um período único, pois há a “diluição” de fronteiras, com a União Europeia, e por estarmos a viver um longo período de paz. Na literatura, o vencedor do Prémio Saramago em 2009 não resume a sua obra a geografias. O seu território é a linguagem literária.
Para Bruno Vieira Amaral, o universalismo é mais uma questão de ângulo do que de geografia.
No entanto, a capacidade do escritor em captar essa universalidade não chega. Na recepção do texto é necessário existir um leitor dotado de ferramentas para a descodificação da mensagem.
A universalidade é resgatada, segundo João de Melo (Mesa 3), pegando-se na pequena geografia. A literatura para ser verdadeiramente literária tem de ser de um lugar e de todos os lugares, de um tempo e de todos os tempos.
“Tentei definir a minha própria fronteira. E a minha fronteira seria de escrever livros onde os açorianos se continuassem a lidar, mas onde também os de cá [continente] vissem que afinal aqueles territórios e pessoas eram familiares”.
As línguas continuam, no entanto, tanto a unir como a dividir povos e respectivos imaginários. Sem uma chave comum de descodificação do sentido, o indivíduo não consegue chegar ao Outro. A distância torna-se mais difícil de percorrer, mesmo não sendo quilómetros, milhas ou léguas a medida de valor.
Valério Romão tem em “Autismo” uma louvada obra literária em que a realidade coexiste com o imaginário. Para conseguir transmitir ao Outro essa experiência, o autor adoptou a linguagem.
“O material de trabalho na escrita é o material da subjectividade e da experiência, ou da abstracção a nível da quantificação ou qualificação de um espaço imaginário. E a linguagem é o único instrumento pelo qual nós podemos passar a experiência subjectiva para qualquer coisa objectiva. É uma moeda de troca comum da minha experiência com as outras pessoas”
Há sempre uma fronteira não ultrapassada porque o livro não é a realidade do leitor; permite somente a “ilusão de domínio da experiência alheia”.
O escritor espanhol José Manuel Fajardo enalteceu, em diálogo com Francisco José Viegas (Mesa 4), a importância do escritor se manter ligado à realidade.
“É importante o contacto com a realidade porque acontece muitas vezes nós morarmos no mundo real, onde fazemos as coisas quotidianas, mas morarmos ao mesmo tempo numa realidade virtual mais antiga que a realidade virtual da internet.”
A realidade imposta pelos preconceitos, pelos muitos erros cometidos no passado e pela ausência de interesse em compreender o outro formam a relação entre Portugal e Espanha. É uma relação histórica de amor-ódio, típica de dois vizinhos, assente em questões psicológicas e históricas formadoras da actual psique colectiva.
No entanto, a demarcação de uma fronteira cultural é muito ténue. De acordo com José Manuel Fajardo, que vive em Portugal, a diferença no quotidiano não é relevante. A grande diferença entre um povo e outro é a língua, que não deixa de ser compreensível em ambas as direcções.
A ligação de Francisco José Viegas com Espanha é pacífica e de afecto. O editor da Quetzal foi buscar muitas influências na sua formação cultural ao outro lado da fronteira, numa época de restrições à circulação de bens e de pessoas.
Hoje, a pluralidade racial e cultural é outra e bem mais evoluída do que na época anterior à União Europeia (ou CEE).
Para Fajardo, “A primeira função de uma fronteira é estabelecer um ponto onde tu não podes atravessar sem autorização expressa das pessoas do outro lado da fronteira”.
Com a nova política europeia e o crescimento das novas tecnologias de comunicação, as divisões geográficas e culturais são menos vincadas do que outrora.
O melhor momento destes dias de festival estava guardado para o fim.
Valter Hugo Mãe demonstrou em “Fronteiras e territórios literários” a sua capacidade de criar empatia com o muito público que o esperava. O escritor nascido em Angola cativou a audiência graças à genuinidade das suas palavras.
Em debate com Tito Couto e Pedro Vieira na Escola Superior de Educação, o autor de “A Desumanização” (Porto Editora) falou da sua “cobiça” por várias áreas artísticas. “Não consigo ser passivo na maneira como gosto das coisas”, afirmou.
O autor declarou o seu deslumbramento pela beleza e pela possibilidade de transcendência.
“A capacidade de as pessoas fazerem algo que as transcende, que nos leva a suspeitar da humanidade que levou àquele resultado, sempre me obcecou”
A diversidade de registos de Valter Hugo Mãe avaliza essa obsessão: a música, a prosa, a edição e o desenho são áreas a que se dedica na procura dessa transcendência. Mas nenhuma está tão presente, em si, como a Poesia.
“A literatura acontece sobretudo por causa da poesia. E convenço-me muito cedo e até hoje que na poesia é onde está a extremidade da palavra. Tenho até a convicção de que os romances começam a ser bons, ou acedem à condição de arte, quando se aproximam da poesia.”
Do lado da recepção do texto, o leitor de poesia é mais exigente do que o da prosa, disse Valter Hugo Mãe. O leitor de poesia rejeita o poeta que se aproxima demasiado de outro poeta. “O plágio na poesia é de uma obscenidade tão grande que o poeta «copião» é liminarmente rejeitado.”
A angústia do autor está concentrada em conseguir escrever livros em que acredita. Tem mais importância do que as vendas. Mas ele não deixa de estar dependente de quem lê as suas obras.
Em relação ao último romance, “A Desumanização”, o autor confessou a sua alegria quando os jornalistas, que são “pessoas que não me devem nada, que devem a eles próprios a honestidade de opinarem com clareza sobre aquilo em que acreditam”, disseram que era o melhor livro dele.
Enquanto não sabe as primeiras reacções, a ansiedade é grande.
“Sofre-se um bocado”, afirmou.
O “Fronteira – Festival Literário de Castelo Branco” termina no dia 04 de Maio com a homenagem a Mia Couto, autor recentemente nomeado para o Man Booker International Prize.
A adesão do público ao festival permite pensar em aposta ganha pela Câmara Municipal de Castelo Branco.
Se dúvidas houvesse sobre a frutificação do investimento cultural, essas foram dissipadas com um testemunho de uma espectadora no anfiteatro.
Visivelmente emocionada, afirmou que assim que o seu bebé tivesse interesse em pegar nos livros da mãe, ou, antes disso, tivesse interesse em ouvir a mãe a ler, então o primeiro livro seria “O Paraíso São os Outros” (Porto Editora), de Valter Hugo Mãe e Esgar Acelerado.
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