A linguagem do horror
Recalcular o valor negociado pela
sociedade sobre o Belo faz-se com violência.
No Festival Literário da Madeira, o “Grupo
Dançando com a Diferença” levou ao palco um manifesto contra a vergonha inerente
à deficiência.
No Teatro Baltazar Dias (Funchal), a peça
“Endless”, criada por Henrique Amoedo, desvendou-se, sem pudor, perante a
observação dos espectadores que lotaram a sala.
Em simultâneo, a Editora Nova Delphi
editou “70 poemas para Adorno”, com prefácio de Gonçalo M. Tavares e
ilustrações de Alex Gozblau, com o objectivo de apoiar financeiramente, através
da receita de vendas, o “Grupo Dançando com a Diferença”.
O grupo de dança inclusiva incorpora a
deficiência numa linguagem física e musical. Não há complacência nem romantismo.
O grupo é um só corpo composto pelas suas regularidades e irregularidades.
O grotesco, em “Endless”, não pertence à
imperfeição física e visível, mas antes à inteligência doutrinal de uma casta
que se queria pura.
A ideologia com base no domínio e purificação
tem várias línguas, culturas e territórios. O homem, transformado em máquina,
isola o inaceitável em Gulags ou campos de extermínio.
No palco do teatro, o horror fez-se de
corpos a cair, derrotados pelo ciciar do gás ou pelo repetitivo estalar dos
disparos.
A grande diferença esteve na divisão entre
vivos e mortos, exterminadores e exterminados, pó e carne.
“Estes são os campos/onde a cinza de homens era/ o único adubo” (versos de
Daniel Jonas).
A linguagem, na sua plural manifestação,
tenta traduzir o horror perante o extermínio. E falha. Só se consegue aproximar,
seja na dança ou na poesia.
Os 70 autores presentes em “70 poemas para
Adorno” confrontaram-se também com a impossibilidade da linguagem espelhar o
horror do holocausto.
“Esta é a história da nossa indiferença/ e é preciso que o poema fale de
dor// ficar calada não é escolha” (versos de Maria Lolita Sousa).
Eis a grande luta do Homem desde a
invenção da Linguagem: capturar numa forma a totalidade do sentido, a solidão
do indivíduo, o incompreensível, o invisível e o etéreo. O fracasso é
ostensivo, mas a tentativa é intrinsecamente humana.
“Deus arranja-me uma nova linguagem/para criar um novo mundo,/dissolvidas
as formas, os rostos e as mãos/Dá-me uma nova linguagem que esta já não
serve/nem mesmo a mudez ou o silêncio./Tudo está gasto.” (versos de Joana
Emídio Marques)
O filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969)
interrogou-se sobre a possibilidade de se escrever poesia depois de Auschwitz.
As fábricas de morte teriam eliminado o encanto da arte. O silêncio criador foi
dominado pelo silêncio da morte. Mas enquanto houver Homem há linguagem. E
enquanto houver linguagem o Homem tentará descobrir as fronteiras do sentido e,
em consequência, os seus próprios limites.
No septuagésimo aniversário da II Guerra
Mundial, a Nova Delphi apresenta 70 traços viscerais que desenham uma imagem
aproximada do incompreensível horror do extermínio tanto da dignidade como do corpo.
Mário
Rufino
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=767311
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