O universo de Gonçalo M. Tavares continua em expansão
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Na última década, muito se alterou na literatura portuguesa. Fenómenos editoriais desapareceram e nomes promissores na literatura apagaram-se. Outros houve, pelo contrário, a surgir com um dinamismo e qualidade invulgares. Entre nomes de excelência como Pedro Rosa Mendes, Afonso Cruz ou Valter Hugo Mãe, elevou-se um fenómeno de popularidade e de qualidade literária: Gonçalo M. Tavares.
Leitores, crítica e júris nacionais e internacionais têm construído um invulgar consenso (e não unanimidade) sobre a imensa e diversa obra do autor nascido em Luanda, em 1970.
Gonçalo M. Tavares, escritor e professor universitário, consegue abranger áreas tão diversas como o ensaio, a poesia, o conto, a epopeia e o romance sempre com singularidade e pertinência.
Não poupemos os adjectivos quando estes existem para tais circunstâncias. Gonçalo M. Tavares pode muito bem ser o escritor mais importante para várias gerações de escritores, críticos e principalmente leitores.
“Uma menina está perdida no seu século à procura do pai” (Porto Editora), o seu mais recente romance, foi apresentado pelo editor Manuel Alberto Valente, no passado domingo, na Livraria Ler Devagar.
O lançamento do livro teve a colaboração de elementos da Faculdade Motricidade Humana, que procederam à leitura de diversos trechos do romance, e do pianista Júlio Resende, autor de “Amália por Júlio Resende”, que interpretou, ao piano, um tema tradicional açoriano e uma composição original intitulada “Da Alma”.
Gonçalo M. Tavares sublinhou a capacidade do pianista em voltar aos antigos para, a partir daí, tentar fazer algo de novo. Esta característica na criação artística é tentada pelo autor português na literatura.
“Uma menina está perdida no seu século à procura do pai” é uma história de amizade entre Hanna, uma menina com trissomia 21, e Marius, um homem em fuga que, estranhamente, pára com o objectivo de a ajudar.
A literatura de Gonçalo M Tavares é um universo em expansão. E a compreensão da importância espacial na sua obra é fulcral.
O autor encontra no espaço a mesma (ou mais) importância que se dá ao tempo; é o espaço que educa o comportamento do ser humano. A arquitectura, por exemplo, forma os hábitos de deslocação. A observação, base do pensamento sobre a realidade, está dependente do corpo. Ao existir um espaço dentro de outro espaço, o inevitável acontece: passa a haver um interior e um exterior (ex: observar a rua por uma janela; observar a rua na própria rua).
O tempo, ligado ao espaço, existe mais como velocidade do que como rememoração. É disso que nos dá conta, por exemplo, Fried Stamm. Este estranho indivíduo quer começar uma revolução mundial com a redução da velocidade das pernas das pessoas. O ser humano, ao abrandar, poderá observar e “digerir ocularmente” as mensagens. Para isso, Fried Stamm utiliza cartazes.
Ao espaço e ao tempo, Gonçalo M. Tavares adiciona a luz. A sombra e a luz condicionam a percepção. E o autor vai mais longe ao transgredir quando sugere que tanto uma como outra pode não ter o valor mais comum (luz não significa lucidez).
Ao transferir esse pilar da narrativa (tempo) para o espaço, Gonçalo M. Tavares explora novas possibilidades na literatura. É óbvio que o tempo existe. O verbo é a casa do tempo e ao ser utilizado denuncia-o. Mas pode ser alvo de transgressão tanto na importância como na linearidade (como no caso dos vários séculos XX contados por vários judeus, responsáveis pela memória colectiva). Gonçalo M. Tavares tem-no demonstrado ao longo da sua obra global.
Ao corpo no espaço e ao corpo como método de aprendizagem, o autor adiciona o corpo no corpo (ver “Atlas do Corpo e da Imaginação”, chave para a ficção).
A genética de Hanna condiciona a sua interacção no espaço e no campo social. As suas regras são simples e mandatórias para serem eficazes. Essa simplicidade desarma os indivíduos com quem interage. A sua capacidade física e intelectual formam a sua realidade. A bem dizer, não existe uma realidade, mas várias em paralelo.
O que poderia ser uma história melodramática de uma menina deficiente à procura do pai e dependente da bondade alheia é muito mais do que isso.
Gonçalo M. Tavares captou, pensou e diagnosticou problemas universais. É esta sua capacidade que faz dele um autor canónico e universal.
Os seus livros não dão respostas. Fazem muito mais do que isso: ensinam a fazer perguntas.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=751593
2 Comentários
É um grande autor.