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"A Filha do Leste" (Teodolito), de Clara Usón

Clara Usón desmonta a genealogia do horror em «A Filha do Leste»


Clara Usón (n. Barcelona; 1961) utiliza as potencialidades da literatura para iluminar os pontos obscuros na história de Ana Mladić, filha do general Ratko Mladić. “A Filha do Leste” (Teodolito) é, até certo ponto, factual, mas a abordagem não literária, utilizada pela Comunicação Social, apresenta demasiados espaços por preencher. A escritora catalã procura apontar possibilidades, através do texto literário, para o real desfecho de Ana Mladić.
O desenvolvimento emocional da filha do comandante de “ O Massacre de Srebrenica” vai desde a total devoção (correspondida) pelo pai, passando pelo seu orgulho em ser sérvia até ao desespero final. Há vários acontecimentos que podem ter sido fulcrais, tanto em individual ou no conjunto, na destruição da identidade de Ana.
A história começa com um deles: a viagem à Rússia com um grupo de amigos estudantes. As diferentes etnias, posições políticas e envolvência amorosa criam várias situações de tensão entre os elementos do grupo. Nessa viagem, Ana é exposta a uma visão exterior sobre o conflito da Bósnia. A sua perspectiva sobre os acontecimentos é posta em causa.
As diferenças culturais, ou a clivagem entre o expectável e o presenciado, são perturbadoras (a opulência do McDonald`s em Moscovo contrasta com a fome nas ruas), mas seriam outros dois acontecimentos a marcar a viagem e a iniciar, pelo menos, a transformação de Ana. Ao ouvir gravações com a voz do seu pai, em casa do namorado que viria a deixá-la por causa do sobrenome, Ana sente a destruição da sua realidade outrora sólida. Depois desse episódio, ouve perturbada e sem os amigos darem pela sua presença, a conversa entre eles sobre o seu pai, o general Mladić. Fica horrorizada e, quando regressa ao seu país natal, a família sente que algo aconteceu.
O contacto com uma perspectiva exterior aos acontecimentos viria a transformar a sua interpretação dos actos praticados por três elementos-chave: Ratko Mladić (seu pai e chefe do exército da República Sérvia durante a Guerra da Bósnia 92-95), Slobodan Milošević (Presidente da Sérvia entre 89 e 97) e Radovan Karadžić (líder dos sérvios da Bósnia com apoio de Milošević).
Clara Usón optou por uma narração intercalada da história de Ana (numa 3ª e indefinida pessoa) e da genealogia da identidade de uma nação e de um povo, intitulada “Galeria de Heróis”
Esta galeria proporciona o indispensável contexto histórico e filosófico das mais sangrentas contendas armadas após a II Guerra Mundial.
Danilo Papo, amigo de Ana, é o irónico narrador destes capítulos que, além dos elementos chave já mencionados, inclui o Príncipe Lazar, santo e mártir da Igreja Ortodoxa Sérvia.
Apoiado pela Igreja, o Príncipe Lazar combateu os otomanos, entre 1373 e 1389, com o mesmo propósito de Karadzic, Milošević e Mladić: reunificar a Sérvia. Seria morto em combate no Kosovo, território que viria a ser abalado por mais destruição no século XX.
Slobodan Milošević, apelidado de “Carniceiro dos Balcãs” devido às guerras com a Eslovénia, Croácia e parte da Bósnia, pretende concretizar a vontade de Lazar através da criação de uma “Grande Sérvia”. Radovan Karadžić, apoiado por Milošević, partilha esse sonho e promove o levantamento militar na parte sérvia da Bósnia. Ratko Mladić era a vertente armada dessa filosofia por ele próprio defendida e enaltecida.
As cicatrizes impostas pelas duas Grandes Guerras (a memória das alianças está muito presente) e a desagregação geográfica e política (comunismo) na URSS, Checoslováquia e República Federal da Jugoslávia envolvem a região num êxtase nacionalista.
A conjugação entre purismo genético, religioso e nacionalista encontrou na ambição de homens com poder as condições necessárias para crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio.
O destino de Ana está ligado ao pensamento herdado de Príncipe Lazar, pois o mesmo pensamento rege a conduta do seu pai. A impossibilidade da filha em compatibilizar o horror de todas as revelações com a devoção pelo seu pai resulta na sua gradual deterioração anímica e física.
Tudo está igual, mas só tarde é que Ana Mladić entende a diferença entre a realidade e a sua interpretação. A história de amor entre pai e filha encontra paralelo no tão mencionado conto de Tolstoi, “Depois do Baile”. O amor deu lugar ao horror e incompreensão. E morreu.
No seu 6º romance, Clara Usón desmonta, através da simbiose entre ficção e realidade, a genealogia do horror de uma região ensopada em sangue. No entanto, “A Filha do Leste”, romance vencedor do Prémio Nacional da Crítica em Espanha, não se resume ao pensamento literário sobre a geopolítica desta região. É, também, uma história de formação e destruição de identidade; uma história de amor e devoção entre pai e filha; um raciocínio pleno de ironia sobre a mitificação e desmitificação. Em suma, uma visão sobre a coexistência da vida e da morte, do amor e do ódio, na mesma região, no mesmo povo, na mesma pessoa.

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=729765

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