As ruelas de Belmonte, debruadas pelo musgo e pontilhadas pelo azevinho, foram as vias de fuga dos judeus, quando perseguidos pelos cristãos. As sombras húmidas dos becos albergam segredos de horrores passados. A vila, berço de Pedro Álvares Cabral, teve gente sua queimada nas fogueiras da inquisição. A terra do descobridor do Brasil recebeu e promoveu o seu primeiro Festival Literário (produção Booktailors) no passado fim de semana.
Muitos monumentos, casas e pedras mostram as marcas da passagem do tempo. A cultura é o elemento que une a parte antiga à moderna Praça das Artes, ponto de confluência dos caminhos percorridos para o Museu Judaico, dos Descobrimentos, do Azeite e ainda para o Auditório Municipal.
O Festival Literário de Belmonte conseguiu unir o que a intolerância tem vindo a separar. As fracturas entre religiões e entre a Religião e os incrédulos foram assunto de debate logo na primeira “mesa”. No interior da Igreja Matriz, Sheikh David Munir e Francisco José Viegas opuseram as suas ideias, com a moderação de Padre Carlos Lourenço, sobre o tema “No princípio era o Livro”.
Num dos melhores momentos organizados para este festival, Sheikh David Munir, sob a égide de Cristo na Cruz, explicou a importância da palavra do Alcorão. Dotado de brilhante capacidade oratória, o Imã da Mesquita Central de Lisboa afirmou que, “nas religiões do livro, nós temos o judaísmo, o cristianismo e o Islão. A Bíblia - se eu disser um disparate agradecia que [o Padre Carlos Lourenço] me corrigisse. Estou na sua casa, que é também a minha casa - é o Antigo e o Novo Testamento. Nós temos um livro divino com o Antigo Testamento e que também contém o Novo Testamento. Eu pergunto: Se há três religiões do livro - Judaísmo, Cristianismo e o Islão, há três religiões monoteístas- Judaísmo, Cristianismo e o Islão, há três religiões abraâmicas - Judaísmo, Cristianismo e o Islão, então se há o livro do Antigo Testamento e se há o outro que é o Novo Testamento, então por que esquecer o último Testamento - O Alcorão?”
O livro é essencial nas três religiões. Mas contém alguns problemas. O único Livro Sagrado lido na língua em que foi originalmente registado é o Alcorão, mas mesmo assim existem traições à mensagem, ora seja pela tradução ou pela utilização indevida.
“A tradução é traição”, afirmou.
“A tradução é traição”, afirmou.
A Paz é defendida pelo Islão. É uma religião de paz. Não existe no Alcorão, segundo o Íman, nada que justifique a limitação imposta às mulheres na Arábia Saudita, onde não podem conduzir (comandar), ou no Koweit, onde não podem votar.
Francisco José Viegas, para quem o judaísmo enquanto cultura e referência é importante, opôs-se à ideia da religião ser um factor de pacificação entre povos.
“O que é que a religião tem a ver com a paz?”, interrogou.
O ex-Secretário de Estado da Cultura apresentou os seus argumentos contra a ideia do Sheikh e do Padre, na Igreja Matriz de Belmonte.
“Por que é que insistimos nessa ideia de que a religião é a Paz? Não tem nada a ver. A religião não é a paz. Queimámos imensa gente em Évora e em Lisboa. E porquê? Porque continuamos a acreditar em coisas antigas“
Os textos fixados nos Livros são anacrónicos quando os aplicamos ao mundo actual. E isto configura um enigma para Francisco José Viegas. Continuamos ligados ao Livro, mesmo sabendo o que tanta gente ligada ao Livro fez ao longo da história.
A importância do Livro Sagrado, para o Padre Carlos Lourenço, não tem um papel simbólico, mas um papel muito real.
“Seja o Alcorão, a Bíblia ou a Tora, o Livro é fundamental para quem quer ter uma relação com Deus”.
Bruno Vieira Amaral também abordou o sentimento e acção religiosa, a propósito do seu novo livro (a sair em 2015).
O vencedor do prémio PEN 2013, com “As Pequenas Coisas”, participou no debate, sob o tema “Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na cidade” (Mesa 5), com Afonso Cruz (escritor), Valério Romão (escritor) e Tito Couto (moderador).
Nesse seu novo livro, Bruno Vieira Amaral parte da centralidade institucional de organizações religiosas como a IURD, ou Igreja Maná, até chegar a um pastor que, incompatibilizado com a estrutura directiva da sua anterior Igreja Maná, inicia uma nova igreja, dentro de uma garagem, na mais feia rua do país, situada na Pontinha.
“Nós temos algumas ideias pré-formatadas do que é um evangélico e chegar ao pé destas pessoas e perceber quais são os seus sistemas de referência, como é que afecta o seu dia-a-dia, como é que transportam a sua fé para a relação com os outros, como é que vivem essa fé, aos domingos onde é que se encontram, tudo isso fez perceber que nós não percebemos o que se passa com os outros, o que tem muito a ver com a questão da cidade. Nós vemos os outros e temos uma ideia. Por exemplo: eu sei que o meu vizinho é evangélico. Mas como é que ele vive essa fé? O que é que isso implica na sua relação com a mulher, com os filhos com os vizinhos ou colegas de trabalho? A questão dos espaços é importante para sabermos quem são aquelas pessoas.”
A possível oposição entre interior e exterior, num contexto geográfico, deixou de ser tão vincada com a evolução das tecnologias e a globalização.
Afonso Cruz, que mora nos arredores de uma aldeia, afirmou ter a possibilidade de em pouco mais de uma hora chegar a Lisboa para conversar com familiares ou amigos. Se se pensar na deslocação dentro da própria cidade, percebemos que a distância física não implica distância temporal.
“Se calhar nós não temos interior; somos um país de litoral. Nós sentimos alguma diferença, mas é relativa. Lembro-me que há alguns estava a viajar e conheci um professor universitário mexicano. Estávamos a conversar sobre a profissão dele e da minha, e eu perguntei-lhe em que sítio do México é que ele vivia. Ele disse-me que vivia não sei onde e dava aulas noutra cidade qualquer. Eu perguntei-lhe se aquela cidade era longe. Não, não. Eu tenho muita sorte. É apenas a duas horas de avião.”
Em relação ao trabalho de escritor, o espaço, ou a interioridade, não o afecta. O autor de “Para onde vão os guarda-chuvas” afirma escrever defronte do computador e não debaixo de um sobreiro. Dessa forma, escrever em Lisboa ou numa aldeia é igual.
Para Valério Romão, autor de “O da Joana” e “Autismo”, a sua produção literária está mais vinculada à sua experiência do que ao espaço onde reside. Sendo a acção exterior dos seus livros reduzida, o desenvolvimento da narrativa concentra-se no pensamento e sentimentos das personagens.
“As minhas histórias, mesmo passando-se na cidade, têm normalmente duas, três personagens, no máximo. Seriam focadas da mesma forma se se passassem no campo, no monte ou num lugarejo com muito poucos habitantes.”
A questão entre cidade/periferia, ou interior/exterior, adquire novas tonalidades quando existe a deslocação de um país para um outro.
Ricardo Dias Felner, jornalista com investigação (publicada e premiada) sobre a legalização de estrangeiros, Karla Suárez (Cubana), autora de obras já adaptadas à televisão e teatro em Cuba e em França, participaram num debate com o tema “Um País em Segunda Mão” (Mesa 3) moderado pelo jornalista Júlio Magalhães.
A adaptação a outras culturas, para Ricardo Dias Felner, acontece com naturalidade. O investigador não sente necessidade de regressar a Portugal, mostrando um sentimento de pertença menos delimitado por uma particular geografia.
No entanto, o choque cultural aconteceu para Karla Suárez quando viajou de Cuba para a Europa
“Quando eu cheguei a Roma, aprendi uma palavra horrível. Os italianos inventaram a palavra extracomunitário, que não era estrangeiro. Era da pior categoria. Um americano não era extracomunitário. Uma pessoa do Canadá não era extracomunitária. As pessoas que vinham da América Latina China, África, Ásia eram extracomunitárias.”
Nas várias cidades onde habitou, como Roma, Paris e agora Lisboa, aconteceu algo de que não gosta:
“Chegava primeiro a cubana, depois eu. As pessoas perguntavam primeiro por Fidel Castro e depois pelo meu pai”.
O maior contraste temático no Festival Literário de Belmonte aconteceu entre a Mesa 2 e a Mesa 4, moderadas por Tito Couto (Booktailors) e Pedro Vieira (Booktailors), respectivamente.
Enquanto Deana Barroqueiro (autora de vários romances históricos), Miguel Real (crítico literário, escritor e professor) e João Morgado (escritor) debateram o preconceito do viajante e a possibilidade de Pedro Álvares Cabral ser um dos últimos viajantes livres, em “Quando decidimos ver as nações Como queremos, não precisamos de sair de casa” (Mesa 2), Isabel Stilwell (jornalista e autora de vários romances históricos) e Joaquim Vieira (jornalista, ensaísta e documentarista) abordaram o aspecto sentimental e biográfico na história das grandes personagens, em “É o coração que faz o carácter” (Mesa 4).
A Expansão Marítima da identidade portuguesa e, principalmente, da evangelização de outros povos contrastou com o aprofundamento emocional na caracterização biográfica de personalidades históricas.
O deslocamento físico na viagem, tendo como efeito a descoberta de novos continentes, foi complementado com a visão interna de personagens essenciais da História de Portugal como Filipa de Lencastre, D. Amélia, Catarina de Bragança (personalidades romanceadas por Isabel Stilwell) e ainda Salazar e Mário Soares (personalidades biografadas por Miguel Real).
A marginalidade destes temas foi concretizada com a Conferência “As Margens”, dada por Álvaro Laborinho Lúcio, no encerramento do festival. O ex-Ministro da Justiça, autor do romance “O Chamador”, analisou o pensamento marginal, utilizando a ficção, a sociologia e a filosofia como fundamentação. A necessidade de “rebeldes competentes” torna-se mais acutilante em tempos de formação do pensamento único, central, e inibidor de novas vias filosóficas e sociais.
O 1º Festival Literário de Belmonte começou, embora não oficialmente, a 26 de Setembro com a presença de Afonso Cruz na Universidade da Beira Interior para conversar com os alunos. Desde Setembro até Novembro, o Festival Literário de Belmonte teve sessões nas escolas, mesas de debate, Exposição de “Mar” e “Futuro” (André Letria), apresentação do livro “Mar” (André Letria e Ricardo Henriques) e Feira do Livro.
0 Comentários