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“ A Viagem do Elefante”




Fraternidade, celebração e muita emotividade na última viagem de Salomão.
A visão de Saramago, o poder amplificador da literatura e a paixão do Trigo Limpo Teatro ACERT originaram um espectáculo de gente, ferro e fogo, de história, música e de folclore.
Aguiar da Beira recebeu, no dia 27 de Setembro, a última viagem do elefante em 2014. Depois de 13 viagens, com partida em Maio e chegada em Setembro, Salomão fez a 14ª antes de descansar até 2015.

A sua imponente figura sob a chuva e a trovoada de Aguiar da Beira aguardava o apaziguamento dos céus. A ansiedade dos elementos do Trigo Limpo Teatro ACERT contrastava com a impassibilidade paquidérmica do animal feito de vime e ferro. Habitantes e actores, todos imprescindíveis neste espectáculo, abandonavam as estradas e calçadas. Salomão, sozinho sob o céu opressivo, era uma criatura vazia.
Mirava-se as nuvens e percebia-se o desconsolo de quem havia trabalhado para a concretização daquela viagem. Saramago tem razão: Salomão somos nós. A nossa condição é de desamparo sob forças, leis, ou ambições alheias à nossa vontade.
Durante os últimos quatro espectáculos, a vida deste grupo de teatro em itinerância foi assim: dependente até ao último minuto dos imprevisíveis caprichos celestes. A voz trovejante anunciava más notícias. Foi sob o ruído da chuva contra os plásticos de protecção dos materiais de som e luzes que todos entraram no Salão Nobre dos Paços do Conselho. Faltavam poucas horas para o começo do espectáculo, quando o poder político e a organização de “A Viagem do Elefante”, por Viseu Dão Lafões, abriram a sessão solene que viria a terminar com a inauguração da “Pegada de Bronze”.
Joaquim Bonifácio (Pres. Câmara Municipal Aguiar da Beira), Nuno Martinho (Secretário Executivo da Comunidade Intermunicipal Viseu Dão Lafões) Francisco Carvalho (Pres. Câmara Municipal de Penalva do Castelo), Pilar del Rio (Fundação Saramago) e Miguel Torres (Director de Produção Trigo Limpo Teatro ACERT) mostraram os bastidores, onde tudo se decidiu e onde os resultados da digressão foram avaliados. O pragmatismo e a emoção viriam a ficar marcados no passeio, junto à estrada por onde Salomão iria passar. A pegada de bronze é debruada com as palavras de Saramago e demonstra a comunhão entre o poder político, económico, cultural e a população.
“A Viagem do Elefante entrará certamente para os registos culturais da comunidade”, disse Joaquim Bonifácio.
A interacção entre Trigo Limpo Teatro ACERT e a população foi a força motriz desta viagem. E esta interacção atingiu a simbiose.
As palavras de António Gonçalves, membro da equipa de produção, eram contagiantes.
“O envolvimento com a comunidade é essencial. Os figurantes são das localidades. Até o burro [que entra no fim] é local!”
A paixão pelo projecto era evidente. E o ânimo ainda mais se elevou, quando a chuva parou de cair.
O pragmatismo económico esteve longe de ser a única interacção entre artistas e população. Cerca de 40% do orçamento foi gasto nas localidades, mas não é isso que fica na memória das pessoas.
O espectáculo foi delas, também, e de forma invulgar.
As 13 edições anteriores, sempre na comunidade Viseu Dão Lafões, tiveram 680 participantes locais, com idades entre os 14 (idade mínima) e os 85 anos. Esses participantes representaram para cerca de 17.000 pessoas, entre as quais estavam filhos, netos, pais, irmãos…
Aguiar da Beira não foi só contexto; foi, também, interveniente directo na história de Salomão através da participação tanto das crianças da terra como do mais ancião.
O começo do espectáculo, sempre num sábado à noite, é o resultado de uma semana de reuniões, reconhecimento do local, ensaios com os participantes (previamente inscritos) e montagem.
Neste sábado 27 de Setembro, quando as luzes se apagaram, e as primeiras frases do livro de Saramago foram proferidas, Salomão deixou de ser de vime, mas sim feito de sentimentos, sonhos, saudade, humanismo e recordações.
Durante 90 minutos, o espectáculo foi de todos. A palavra andou na rua. E a rua foi pequena para tanta gente: pessoas empoleiradas nas árvores, outras sentadas no topo de estruturas com 4 ou 5 metros, bancadas cheias e nenhuma cadeira vazia. Muita gente assistiu de pé.
Sentia-se o orgulho do público. ”Tá mais gente do que em dia de Feira”, disse D. Olinda, cujo marido preferiu ficar na companhia de uma grade de minis, em casa.
Salomão entrou nas suas vidas; a palavra de Saramago libertou-se das academias, dos poeirentos e elitistas círculos literários, rebelou-se contra o seu uso na ostentação absurda e cavalar desses meios em si mesmos fechados e multiplicou-se em formas, sons e cores na imaginação das pessoas. A palavra literária foi dada ao povo. Até mais do que dada. A palavra do nobel português foi reconstruida, ampliada no seu significado, pela conjugação do esforço e da paixão da companhia de teatro, da produção musical e da população.
O vínculo emocional ao que foi construído é muito forte. Durante o espectáculo, os comentários sobre a história foram intercalados com o espanto pelos cenários, luzes, a música de Luís Pastor e Flor de Jara, os poemas de Saramago, a pirotecnia e o reconhecimento dos vizinhos e amigos que contracenavam com os actores profissionais. Percebeu-se, também, que muito público havia acompanhado os ensaios, pois reconheceram muitas das cenas ensaiadas. Muitas, mas não todas. O fim de Salomão só foi revelado no fim da peça. Aí, sentiu-se o impacto dramático na respiração dos espectadores.
Perante todos, aquele engenho cénico transformou-se em animal de estimação.
Uma criança não quis acreditar no destino de Salomão. A ingenuidade de menino impede-o de saber que o elefante é “troiano” tal qual é Peter Pan, Moby Dick, ou outro singular personagem: traz, dentro de si, a destruição do mundo monocromático e plano. Transporta, no seu interior, a magia da literatura. 

As luzes apagaram-se. A rua escureceu. E a voz de José Saramago ecoou por entre as casas e bem dentro da saudade.
As luzes reacenderam-se, a música acelerou, as pessoas acompanharam com palmas enquanto todos os intervenientes no espectáculo dançavam na rua. A fraternidade completou-se com a invasão do espaço cénico pelo público, com as lágrimas e os risos, os abraços e as danças, os parabéns e as despedidas, as fotografias e os beijos.
A cultura é fraternidade. E ela aconteceu com grande intensidade em Aguiar da Beira.
De manhã, o sol mostrava a rua seca. Mas já não era a mesma rua. Estava mais triste e vazia. Salomão tinha partido.









http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=733300

Mário Rufino













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