Qualquer Império tem em si a génese da sua própria destruição. Os seus fundamentos serão a causa da sua queda. E nas ruínas, outro império renascerá para se autodestruir. A embriaguez do desenvolvimento não permite a auto-análise. O que os faz subir os fará cair. Philipp Meyer (n.1974, Baltimore) relembra-nos, com “O Filho” (Bertrand), os ensinamentos da História que teimamos em esquecer.
A epígrafe de Edward Gibbon, sobre o domínio e a queda do Império de Roma, introduz o tema do livro e desenha o paralelismo entre as quedas de diferentes formas de domínio.
Meyer continua, após “Ferrugem Americana” (Bertrand) a escalpelar a alma norte-americana.
Meyer continua, após “Ferrugem Americana” (Bertrand) a escalpelar a alma norte-americana.
Compreendendo o período de 1836 até 2011/2012, “O Filho” é narrado, principalmente, por três vozes do clã McCullough. A divisão da narração por Eli McCullough (1836), filho de Armstrong McCullough e Natalia Diaz, Peter McCullough (1870), filho de Eli e Madeline, e Jeanne Anne McCullough (1926), neta de Peter e bisneta de Eli, permite a construção de um épico capaz de envolver diversas gerações e acontecimentos históricos.
Eli McCullough, personagem angular, foi o primeiro filho de pioneiros a nascer em território ocupado. Eli nasceu no ano em que o Texas se declarou independente do México. No decorrer da história, a turbulência no território foi intensa e as influências culturais sempre diversas. Depois do domínio mexicano, o território viria a estar em constante contenda com os nativos, estaria e sairia da União, seria derrotado na Guerra Civil Americana e integrado como Estado nos Estados Unidos da América.
A história do território texano acumula-se em camadas de sangue, ossos, ambição, derrotas e vitórias.
“No rancho, tinham encontrado pontas de lança das eras Clóvis e Folsom e, enquanto Jesus caminhava para o Calvário, o povo mogollon andava à pancada entre si com machados de pedra. Quando chegaram os espanhóis, havia os Sumas, Jumanos, Mansos, La Junta, Conchos e Chisos e Tobosos, Ocanas e Cacaxtles, os Coahuiltecans, Comecrudos… mas ninguém sabia se eles tinham exterminado os Mogollons, ou se descendiam deles. Foram todos exterminados pelos Apaches. Que, por sua vez, foram exterminados, pelo menos no Texas, pelos Comanches. Que, por sua vez, foram exterminados pelos Americanos”.
O desenvolvimento da economia local e da política reflecte a mutação do poder no território. A família McCullough passou de proprietária de gado para detentora de muitos poços de petróleo (descoberto em 1901). Jeanne Anne McCullough, de quem ouvimos as últimas palavras numa brilhante suspensão temporal de Philipp Meyer, tenta impor a sua visão feminina num mundo machista. Ela tem uma ideia: começar a prosperar em terras iraquianas, bem mais produtivas do que as suas. Mas o poder dos homens não permite que ela seja ouvida.
A história (ou histórias) de “O Filho” começa com um Eli já centenário a recordar a sua vida. E em poucas frases ele capta a essência do que acabámos de resumir:
“O campo fervilhava de vida, tal como hoje está putrefacto de gente”.
Foi nessa época que Eli se viu envolvido no acontecimento que mudaria a sua existência. Os temíveis Comanches atacaram a sua casa e, na ausência do pai, violaram e esquartejaram a sua mãe e a sua irmã. Ele e o irmão Martin foram levados para possível venda. O pragmatismo de um e a filosofia do outro resultariam em destinos opostos.
Eli, filho de pioneiros, viria a experimentar a liberdade, o contacto com a natureza e a iniciar-se sexualmente entre as índias. O seu nome deixa de ser Eli. Ele passa a ser Tiehteti. A presa torna-se predadora. Tiehteti assume a conduta moral dos seus companheiros, especialmente de Nuukaru, e assume a condição de caçador de brancos. Ele faz tudo para sobreviver e conquistar respeito dentro do seu grupo. Os métodos selvagens são, quando em abstracto, iguais aos dos brancos. A miscigenação, ao longo das décadas, entre europeus, mexicanos e nativos diminuiu o sentido do conceito de raça. O comanche Nuukaru afirma, a certo ponto, “"descendemos todos de cativos, a dada altura".
Eli/Tiehteti poderia ser a ligação entre as diversas facções, mas tal não acontece. O que o homem branco não conseguiu fazer com as armas viria a ser feito com a varíola e a cólera. A doença mataria quase toda a população indígena. Eli, vacinado em criança contra a varíola, sobrevive, regressa e começa a construir um império. Anos mais tarde, seria apelidado de “caçador de índios”. Os inimigos do seu império são tratados sem piedade. Sejam índios ou mexicanos. Isso impõe sérias consequências no seu filho Peter McCullough, homem introspectivo e moralista.
Não há grande diferença entre índios e brancos. A luta por recursos é constante; o choque de hábitos culturais é exponenciado pelas atitudes beligerantes e, claro, antagónicas; continua a lei do mais forte sobre o mais fraco, numa postura de eliminação, sem haver contornos nítidos de uma lei geral; a ambição de ser mais e ter mais é património comum.
O instinto de sobrevivência, a conquista de poder e riqueza formam a Moral e impõem o código de conduta.
O instinto de sobrevivência, a conquista de poder e riqueza formam a Moral e impõem o código de conduta.
A grande diferença acontece quando o homem deixa de percorrer territórios em busca de caça e começa a angariar, guardar e produzir gado e cereais. A sedentarização é oposta ao nomadismo anterior. O petróleo iria consolidar esse sedentarismo.
Philip Meyer desmonta a mistificação do índio bárbaro e do índio romantizado, ambos delineados pela história e, principalmente, pelo cinema americano.
O "excesso de realismo", usando uma expressão de James Wood, na descrição dos costumes dos índios contribui para a veracidade do contexto histórico. A descrição, nunca fastidiosa, está subordinada à assimilação da cultura tribal por Eli.
Em vez de se ancorar em estereótipos, Meyer criou personagens e colocou-as em situações em que a moralidade sucumbe. O leitor é levado a pensar que determinada acção ou costume está errado… mas que ele poderia fazer o mesmo quando em iguais circunstâncias.
Utilizando o Texas como metonímia dos Estados Unidos da América, o escritor norte-americano consegue exponenciar a tensão da família McCullough com o exterior, entre os seus próprios membros e explorar os dilemas interiores das personagens principais.
Segundo Eli McCullough, o filho é a semente da destruição.
Segundo Eli McCullough, o filho é a semente da destruição.
Philipp Meyer foi ambicioso no projecto e notável na construção do sucessor de “Ferrugem Americana”.
“O Filho” é um romance completo.
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