Procurando a
verdade.
É raro encontrar um escritor com esta qualidade.
Edward St Aubyn (n.Londres; 1960) transformou a sua
miséria pessoal em “A Família Melrose”, um quinteto de romances que segue a
perspectiva de/sobre Patrick Melrose.
O personagem principal é o alter-ego de Edward St
Aubyn. Ambos foram vítimas de abusos sexuais perpetrados pelo pai; ambos foram
toxicodependentes; e os dois almejam a saída de uma sociedade podre, oca,
baseada na herança de estatuto e na falsidade presente nas relações sociais.
Edward St Aubyn encontrou a sua saída ao criar
literatura a partir das suas dores: “Deixa Lá/Más Novas” (Sextante), “Alguma
Esperança/Leite Materno” (Sextante) e “Por Fim” (a editar também pela Sextante)
são a sua terapia.
A impossibilidade de alcançar a totalidade de
perspectivas do ser humano é omnipresente na obra de que aqui se trata: “Alguma
Esperança/Leite Materno”.
Durante uma vida, a composição da personalidade
começa no nascimento, continua com a infância (com todos os seus traumas) até ao
fim da existência. Patrick tem a noção desse caminho ser uma deriva, apesar de
todo o esforço em se demarcar uma partida e uma chegada. (O desdobramento em
vários papéis sociais e personagens permite pensar sobre as diferentes formas assumidas
pelo dilentantismo.)
Durante o curto tempo cronológico de “Alguma
Esperança”, St Aubyn demonstra como o vazio pessoal pode motivar a fuga através
do álcool, cocaína e heroína.
Nesta sociedade hipócrita em que se movimenta
Patrick Melrose, agora com 30 anos, a sexualidade é reduzida à banalidade
através da promiscuidade e da leviandade com que (não) se fomenta as ligações
sentimentais. O sexo é mais uma e poderosa demonstração de hedonismo. Esta
podridão esconde-se atrás do estatuto inerente ao nome de família.
Já em “Leite Materno”, a narrativa começa com o
nascimento de Robert (1º filho de Patrick e Mary Melrose). A perspectiva é a de
Robert, já adulto, enquanto recorda a sua infância.
Essas suas recordações (memórias vividas ou mesmo
inventadas) remetem a formação do ser humano, como ser gregário e indivíduo consciente,
para o vínculo com a progenitora. É disso exemplo a confusão, pelo irmão Thomas
(2º filho de Patrick), quando bebé, dos pronomes “tu” e “eu” (a troca é
constante) e a belíssima frase sobre a ligação de Robert com a sua mãe:
“Orientou a
cabeça do bebé em direcção ao seu mamilo e ele começou a mamar. Um fino veio do
seu velho lar inundou-lhe a boca e eis que estavam de novo juntos. Conseguia
perceber o bater do seu coração. A paz envolveu-os como um ventre renovado.”
A mãe, ainda na maternidade, reconforta-se ao dizer
que se iriam adaptar e vencer as incertezas da maternidade/paternidade e o medo
de que os traumas de infância os formem como maus pais. Patrick, pai de Robert,
tem uma postura mais cínica.
“Vamos
safar-nos – disse a sua mãe- Já não somos filhos, somos pais.
- Somos ambas
as coisas – disse o seu pai – é esse o problema”
A possível manutenção de comportamentos, por
assimilação ou herança genética, tornou-se uma obsessão para Patrick. A sua
ligação aos pais é tudo menos pacífica. A mãe usa-o, desde sempre, para
concretizar as suas vontades. O pai abusou dele.
A ligação entre filhos e pais tem eco nas
constantes menções a “King Lear”, tragédia de Shakespeare, e a Mrs Jellyby,
personagem de “Bleak House” (Dickens), que, tal qual Eleanor Melrose (mãe de
Patrick), “dedicaria a sua vida em prol
dos outros, desde que não fossem da sua família”.
Em suma, as principais personagens das duas novelas
deste volume lidam com as fundações das respectivas personalidades. Os papeis
de irmão/ã, filho/a, pai/mãe, marido/mulher são partes de um todo
multifacetado, modernistas na incoerência, e sintomas de indivíduos perdidos,
diletantes, à procura de um caminho.
A escolha de uma avaliação psicanalítica (tão
freudiana) da família e dos seus constituintes, em “Alguma Esperança/Leite
Materno” é fulcral, mas não deixa, mesmo assim, de ser interrogada pelo próprio
autor.
“Quando é que
um charuto era apenas um charuto?”
Há sempre o risco de algo ou alguém não ser mais do
que se vê.
Seja através do drama ou da comédia, a análise do escritor
britânico, que incide tanto na macroestrutura social como no aspecto individual
dos elementos que a constituem, tem como objectivo desmontar a mentira e
encontrar a verdade, por mais dolorosa que ela seja.
A capacidade demonstrada por St Aubyn na construção
da narrativa é impressionante. A complexidade da estrutura dos romances impede
a linearidade da história, mas manifesta o domínio de técnicas narrativas de
uma forma pouco vista. Em “Alguma Esperança”, a plasticidade dada ao momento do
jantar em Cheatley, antes da festa com a princesa Margarida, é demonstrativo.
Se em “Alguma Esperança” o tempo cronológico é
sucinto, já em “Leite Materno” o tempo é mais extenso, apesar de dividido em várias
partes e sempre no mês de Agosto.
O autor inglês alcança a excelência na composição
dos diálogos, na utilização de diferentes técnicas narrativas, na inteligência
e subtileza com que usa a ironia na crítica social e na análise psicológica das
personagens.
“Alguma Esperança” e “Leite Materno” são muito mais
do que uma primeira leitura pode apreender. As camadas a interpretar
sucedem-se. Edward St Aubyn construiu um extraordinário labirinto emocional,
onde Patrick Melrose luta para se encontrar.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=726994
Alguma Esperança | Leite Materno by Edward St. Aubyn
My rating: 4 of 5 stars
O meu texto sobre estas duas obras de Edward St Aubyn.
http://oplanetalivro.blogspot.pt/2014...
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Alguma Esperança | Leite Materno by Edward St. Aubyn
My rating: 4 of 5 stars
O meu texto sobre estas duas obras de Edward St Aubyn.
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