“A Experiência”, de Ferreira de Castro
Quando o menino Januário, então já apaixonado por Clarinda, saiu do asilo
“A Experiência” não sabia que regressaria adulto ao mesmo edifício, entretanto
transformado em prisão, para aguardar julgamento.
Januário e Clarinda, separados após a saída do asilo, têm percursos
distintos até se reencontrarem. O círculo fecha-se, e o resultado da educação
dada em “A Experiência” não é o almejado por Sampaio Mendo, criador do asilo. O
trajecto é marcado pela delinquência e marginalidade.
Ferreira de Castro (n. Oliveira de Azeméis, 1898-1974), em “A Experiência”
(Cavalo de Ferro), continua a impor condições adversas às suas personagens para
defender a sua ideologia. As circunstâncias esmagam as possibilidades de
salvação do Ser Humano. O determinismo social não permite a conquista de
conforto e estabilidade aos mais desafortunados.
A tensão entre um homem num contexto e a sua liberdade é constante na obra
do autor de “A Selva”. O Ser Social é subtraído de dignidade quando em desigualdade
de direitos e oportunidades.
O escritor realista continua a debater-se com assuntos como a luta de
classes, a exploração pelo poderio económico (aparelho produtivo) e a imposição
moral (Igreja). A ruptura com a dependência social é indispensável à evolução
do Homem como par entre pares.
O autor aprofunda a sua análise em “A Experiência”, ao avaliar a diferença
entre discurso e acção. As intrínsecas características do Ser Humano condenam
ao fracasso as tentativas de igualdade social. A ideia de irmandade está
ausente nas acções praticadas. Quando a palavra é levada à prática, a sociedade
– 1º os barões e depois o povo influenciado por estes – não aceita o ensino da
paridade entre os homens.
Com o objectivo de mudar a natureza do Homem, Henrique Sampaio Mendo deixou
em testamento o seu património para a construção do asilo pois, segundo ele,
“tão medonho bicho só poderá modificar-se depois de modificar o seu meio
ambiente - não com doces falas à natureza, para que ele é propenso, mas
investindo resolutamente contra ela.” Pág. 168
A sua determinação em implementar uma filosofia de ensino que proporcione a
igualdade não é suficiente. O Homem não consegue modificar a sociedade em que
se insere. Desta forma, falha o objectivo do benemérito em formar homens e
mulheres com capacidade para “amar e compreender os homens para melhor aclarar
e melhor combater as razões das injustiças, da miséria e da servidão que anulam
tantas vidas e que levam muitas outras ao desespero e até ao crime (...) ” Pág.
170
“A Experiência” é homogénea quanto à temática, mas heterogénea quanto à
forma, quando a comparamos com “Emigrantes” e “A Missão e O Senhor dos
Navegantes”, obras também reeditadas pela Cavalo de Ferro.
Repare-se em Januário, então encarcerado, quando ouve distraidamente as
conversas dos outros prisioneiros. No mesmo local, habitam dois tempos:
“Não queria [Januário] desprezar os companheiros, mas os caminhos apagados
e enterrados pelo tempo vinham de novo à flor da terra, mesmo contra a sua
vontade, e ali ficavam como longas cicatrizes.” Pág. 26
Através desta distracção, Ferreira de Castro consegue intercalar o tempo
presente (prisão) com o passado, tanto o remoto como o próximo (do asilo à
prisão). No entanto, a dinâmica da narrativa não depende exclusivamente da
alteração de tempo.
E também neste aspecto há uma clara alteração em “A Experiência”, quando
comparada com “A Missão” e “O Senhor dos Navegantes”
A mudança é exercida pelo autor através da adopção de várias perspectivas
sobre diversas personagens. A sua visão tanto incide em Januário, ou Clarinda,
como incide numa perspectiva mais globalizante através da análise das cartas de
Sampaio Mendo pelo Doutor Macieira, responsável pela escrita dos “Anais de
Mangudas”.
Outrora publicada no volume composto por “A Missão” e “O Senhor dos
Navegantes”, “A Experiência” é reconhecida pela editora Cavalo de Ferro como
merecedora de destaque e de publicação exclusiva.
Compreende-se a razão de tal estratégia, pois estamos perante uma obra reveladora
da mestria do autor na construção de uma narrativa mais complexa.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=715469
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