O Louvor à criação.
Dulce Maria Cardoso (texto) e Vera Tavares (ilustrações) conjugaram
esforços e competências na produção de um belo, sensível e rico texto
literário.
“A bíblia de Lôá” (Tinta-da-China) é o nome de uma colecção composta por
vários episódios referentes a momentos essenciais da Bíblia Sagrada. “Lôá e a
véspera do primeiro dia” e “Lôá perdida no paraíso” são os dois primeiros
volumes e cobrem o período bíblico deste a Criação do Mundo até à Expulsão do
Paraíso.
A simplicidade dos dois livros é ilusória. Na verdade, as duas obras
conseguem abranger diversos tipos de leitores devido à abertura a
interpretações plurais detentoras de maior ou menor profundidade. A abordagem
ao texto tanto pode ser de simples fruição como de leitura assistida ou mesmo
de âmbito académico, em sala-de-aula. Os dois volumes são enriquecidos, no seu
final, com propostas de abordagem pedagógica ao texto literário.
Motivados por esse lado pedagógico, os leitores poderão analisar, entre
outros aspectos importantes, a construção sintáctica (predominam as frases
curtas), a aquisição de novos traços semânticos (Louvor, Loa> Lôá) e a
formação de neologismos (pára isso>; paraíso) em 2 textos reveladores da
mestria da escritora portuguesa. Poderão, também, compreender que as
ilustrações de Vera Tavares revelam-se, tal como o texto, de uma perspicaz e
complexa riqueza simbólica.
A alegoria nas histórias da menina Lôa é enriquecida com o ponto de vista
feminino das duas autoras. A menina é a deusa que, suspensa num estado febril,
desenha um mundo no seu caderno para, num sopro iniciático, espalhar e divulgar
as suas criações. ELA é a criadora do significado e do significante.
No primeiro episódio, ou volume, intitulado “Lôá e a véspera do primeiro
dia”, Lôá, que pode ser um anagrama de “Olá” ou significar “cântico em louvor
dos santos, ou de Deus, ou da Virgem”, é a matriarca de um mundo imaginado,
desenhado num caderno, cada vez mais complexo.
Tudo começa nesse sublime acto criativo em que, a partir do nada
simbolizado pela folha em branco, ela responde ao desafio de Sôssô, um eco que
reflecte (e não repete) o que se lhe diz. A partir daqui, Lôa, talvez por
metonímia com Dulce Maria Cardoso e Vera Tavares, vive perdida no mundo por si
criado.
No 2º episódio, nasce Élô como Adão, homem primeiro no mundo. E com ele
nasce a noção de culpa, de escolha e divergência. Tal como Adão, Élô rebela-se
contra o criador. A menina-deusa perde, inevitavelmente, o domínio sobre a sua
criação. Eló segue o seu caminho acompanhado de Élá, Eva criada à sua imagem..
A polissemia da palavra “reflectir”, repetida por Sôssô, é utilizada como
matéria-prima na construção da visão das personagens. A reflexão narcísica leva
à criação. Posteriormente, a interpretação de Élô sobre o mesmo acto ou objecto
é diferente. A visão da criadora é diferente da visão da criatura. Se para o
objecto lápis diz-se “Lápis”, para Élô, que vê o reflexo, o objecto tem o nome
de “Sipal”. A visão de Élô é uma tradução daquela realidade.
Este pormenor é mais importante do que pode, numa primeira análise,
parecer. Toda a criação de Lôá é o seu reflexo; tem as suas qualidades e
defeitos. Assim como toda a criação é uma projecção do seu autor.
Os dois volumes de “A bíblia de Lôá” são um louvor à criatividade, seja ela
artística ou divina.
Dulce Maria Cardoso e Vera Tavares ironizam com a ideia de um demiurgo
platónico. A mulher, ventre da criação, detém e aplica o seu poder demiurgo.
Em “A bíblia de Lôá”, o poder criativo é feminino.
Mário Rufino
Mariorufino.textos@gmail.com
1 Comentários
Hoje um bom músico, compositor que atingiu o auge da sua carreira há 2 ou 3 décadas é cota e a sua obra é ouvida quase apenas pelos da sua geração... para já não falar do efeito do marketing que valoriza a novidade como o melhor muitas vezes enviesando as mentes do consumidor que deixa de ter capacidade de apreciar a inovação e a qualidade.